segunda-feira, novembro 28, 2005

Ponto de Cultura


Ainda antes dos acontecimentos do post anterior, tive a oportunidade de poder estar presente na inauguração da exposição (ou melhor na instalação, nas palavras do seu coordenador) fotográfica relativa à «memória fundadora das suas carreiras» de Rui Mendes e Cármen Dolores, no Teatro da Trindade. E refiro não só o prazer como o privilégio de poder estar ali presente pois tive a possibilidade de por instantes conviver com estes vultos da nossa cultura contemporânea e de poder com eles reviver, através das diversas intervenções desse fim de tarde, muita da nossa história do Teatro Nacional, com especial atenção para a segunda metade do século XX.

Começo com o Rui Mendes. É sobejamente conhecida a sua carreira, nomeadamente na televisão. E, sinceramente, dava pouco por ele. Depois, em tempos recentes, descobri-o no teatro, sempre no Trindade, em peças como o Proof, Picasso e Einstein (onde também encena), e, especialmente, no Magnifico Reitor (de Freitas do Amaral). Aqui descobri-lhe algum talento. Entretanto conheci mais sobre a sua pessoa, o seu lado humano. Passei então a respeitá-lo. Na passada segunda feira, ouvi deambular sobre a sua carreira, sobre os seus anos rebeldes (do Grupo 4 e nomeadamente do Ádóque (pós 1974), sobre a sua proibição de trabalhar na Emissora Nacional, o facto de ter recusado um premio do SNI (na altura já SEIT) de melhor actor do ano em teatro musicado, em 1971, o ter participado no Teatro Moderno de Lisboa e no Teatro Popular; enfim o de ter estado, directamente o indirectamente ligado aos principais momentos culturais do nosso teatro contemporâneo, na sua dimensão alfacinha. Ao me transportarem assim para esse mundo, revivendo a carreira do Rui Mendes, para lá de me ter reforçado as ideias que vinha construindo acerca do actor e da pessoa fizeram-me crer que estava na presença de um Grande. Um dos nossos Grandes.

Sobre Cármen Dolores a escrita torna-se mais aguda. Não só porque não me lembro dela, não só porque dela nada vi, mas especialmente por ter andado muito desatento não só ao seu trabalho como à sua importância e à sua relevância para a nossa identidade e valia cultural. Eu era daqueles que a via muito longe, ainda sem cor; a preto-e-branco. No entanto, ouvir falar dela, em primeiro lugar, e ouvi-la falar de si, em segundo, significou para mim o colorir de páginas e páginas de histórias pensadas como já idas, mas ainda muito vivas. Explico. Esta senhora, vulto das artes de palco, estreou-se em cinema em 1942 com o Amor de Perdição de António Lopes Ribeiro, cuja première foi também no Teatro da Trindade (antigamente com duas «épocas» uma de cinema e outra de Teatro). Em 1945 pisava os palcos do Teatro da Trindade na peça Electra, A Mensageira dos Deuses. Na altura estava ligada aos «Comediantes de Lisboa». Rapidamente transita para o Teatro Nacional e se transforma numa das mais aclamadas e queridas actrizes nacionais. Toda a sua vida artística foi marcada pelo sucesso, pela emoção do desafio (frequentemente abandonava os cânones tradicionais e dava azo a novas experiências teatrais), é pelo desprendimento da vida material em prol da vivência cultural da arte teatral. Recentemente esteve com o Teatro Aberto, com projectos de récitas de poesias (edição de um CD de poesia Poemas da Minha Vida), e à APOIARTE, associação de apoio aos artistas (onde pertence aos corpos gerentes) e à casa do Artista. É demasiadamente premiada para que se esqueça: Ordem de Santiago e Espada (1999), Medalha de Mérito Cultural, da SEC (1991), e, recentemente, recebeu das mãos de Jorge Sampaio o grau de Grande Oficial da Ordem do Infante D. Henrique. É, hoje, cultura viva. Cultura portuguesa.

Quando, segunda-feira, dia 21, foi inaugurada a placa conjunta relativa a ambos (no salão nobre do teatro) arrepiei-me. Tanto se critica o esquecimento, o imediatismo dos consumos culturais contemporâneos. Por momentos o Tempo parou, e naquela sala repuseram os pretos e os cinzas. Homenagearam-se vivos. Analisou-se discurso. Pensou-se Cultura.

A exposição que se inaugurou conta de fotografias da ambas as carreiras aqui retratadas. Moldam-se ao Teatro, ás suas salas e paredes, como que serpenteando pelos andares e pelas formas – curvas, grandes, rectas, simples –. Os retratados surgem-nos no seu esplendor, ocupando palcos e transbordando vidas, não suas, mas de personagens estranhas e simultaneamente acolhedoras. A experiência partilhada com esta instalação é múltipla: agradável, forte, delicada, saudosista, descobridora.

Recomendo, de preferência antes ou depois de uma peça.

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