quarta-feira, novembro 16, 2005

Os inconvenientes da honestidade

« COMPRADOS
“O Tatu tá comprado”. A frase percorreu o vestiário, dita baixinho, antes de o time entrar em campo. Significava que o goleiro do time adversário tinha concordado em facilitar a entrada da bola no seu gol mediante uma compensação financeira. Ou, resumindo: o Tatu tava comprado. Bastava chutarem contra o gol do Tatu, de qualquer distância, que o Tatu aceitaria. O jogo estava ganho.

Como o jogo estava ganho, o pessoal relaxou. Não só não chutou nenhuma bola, de qualquer distância, contra o gol do Tatu, como levou dois gols, em poucos minutos, do adversário. Aliás, gols estranhíssimos. Que provocaram suspeita: assim como o goleiro do outro time tinha sido subornado, o deles também poderia ter sido. O Valmor também estava comprado! Começaram a pressionar para diminuir a diferença. Chutaram quatro bolas contra o gol do Tatu. Duas foram para fora, uma bateu na trave e a outra o Tatu defendeu sem querer. Enquanto isso, o Valmor deixava passar outra bola pelo meio das pernas. Três a zero para o adversário. O jogo estava quase perdido.

No vestiário, no intervalo, o Valmor reagiu com violência à insinuação de que estava comprado só porque deixara passar três bolas pelo meio das pernas. Se estivesse comprado, falharia de modo tão evidente para não deixar dúvidas? Podia ser ruim, mas não era burro e muito menos desonesto. O argumento do Valmor foi aceite, todos se desculparam por terem desconfiado dele, e ele foi substituído pelo Nono, que tinha sido comprado e prometera dez por cento do que ganharia ao Valmor por provocar a sua própria substituição.

O técnico Bentinho puxou o centroavante Ramiro para um lado. Iam mudar de táctica. Em vez de chutar contra o gol do Tatu de qualquer distância, o Ramiro deveria tentar entrar na área a drible. Assim daria oportunidade ao Tatu de sair do gol e derrubá-lo. Penalti. Quatro penaltis como aquele e o jogo estava ganho.

A ordem era: bola para o Ramiro. Para ele entrar na área a drible e ser derrubado pelo Tatu. Mas o Ramiro recebia a bola e a devolvia. Ou pegava a bola na entrada da área e, em vez de arrancar para o gol, recuava. O Bentinho aos berros: “Entra na área! Entra na área!” O Tatu aos berros: “Entra na área! Entra na área!” E o Ramiro recuando, passando para os lados, fazendo tudo menos entrar na área para sofrer o penalti. O Tatu ficou tão impaciente que a certa altura saiu do gol e foi derrubar o Ramiro lá na intermediária. Não era penalti mas funcionou. Quem bateu a bola chutou fraco mas acertou o gol, o Tatu fingiu fazer golpe de vista e a bola entrou no canto, três a um. Cinco minutos depois, a defesa atrasou a bola para o Tatu, que a deixou passar. Três a dois. Só faltava Ramiro entrar na área e sofrer um penalti e o jogo estava ganho.

Desde que Nono, comprado, não aceitasse nenhum gol do adversário. Nono aceitou duas bolas chutadas de longe, mas nos dois casos o bandeirinha daquele lado, que também estava comprado, deu impedimento. Ramiro se surpreendeu ao ouvir o juiz lhe dizer, num cochicho: “Entra na área! Entra na área!” Ele não podia entrar na área e sofrer o penalti. Estava comprado. Mas qual era a do juiz? O juiz: “Entra na área ou eu te expulso!” Bentinho, de fora do campo: “Entra na área ou eu te arrebento!” Tatu, do gol: “Entra na área ou eu vou aí te quebrar!” O Ramiro não sabia o que fazer.

Ramiro entrou na área. Quando o Tatu saiu do gol e quis derrubá-lo, pulou por cima do Tatu e chutou para fora. Mas o juiz deu o penalti assim mesmo! Também estava comprado. Ramiro fingiu que se tinha machucado para não precisar chutar. Quem chutou foi o Massaroca. Para fora. Também estava comprado. Mas o juiz mandou bater de novo. O Massaroca errou de novo. O juiz mandou repetir. O Massaroca caiu no chão, simulando uma síncope. Grande confusão. Massaroca retirado do campo. Chegou correndo o Nono, gritando: “Deixa que eu bato!” Chutou fraco e em cima do Tatu, que foi obrigado a pegar. Mas, ao fingir que ia repor a bola em jogo, Tatu deixou-a cair dentro do gol. Três a três. Bom para todo o mundo. O bandeirinha daquele lado ainda quis insistir que havia irregularidades: no lance, invasão da área pelo time atacante, o Ramiro dando uma voadora no juiz, os padioleiros, que estavam comprados, despejando o Massaroca no chão só de raiva, etc. Mas ninguém lhe deu atenção. O empate estava bom. Era só o que faltava, um honesto querendo estragar tudo. O juiz apitou. Mesmo faltando quinze minutos, o jogo estava encerrado. »

Luís Fernando Veríssimo, in Actual, Expresso, 12 Novembro de 2005

Não vos soa vagamente familiar, mas um pouco mais flagrante?

2 comentários:

Geosapiens disse...

...hilariante...muito bom...um beijo...;)

Unknown disse...

MMMAAAAAANNNNNNN!!!!

3 - 3 ?

Que grande Jogo!!!

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