Ainda a propósito de estratificação social, por um lado, e de recursos por outro (ver posts anteriores) importa pensar o actual novo-riquismo.
É, dizia-me um amigo aquando da inauguração do MUDE (1), a atitude da professora da Escola de Espinho que terá dito à mãe da sua aluna que ela, professora, é que estava na posse da razão - e não a mãe da aluna - pois ela, professora, possuía uma licenciatura.
É um chefe que, por o ser, torna indiscutíveis as suas opções e fecha as portas e os ouvidos aos seus subordinados ou colaboradores, dizendo "pode ser essa a vossa opinião mas eu é que decido".
É quem não tem competências para se apropriar dos produtos culturais - vulgo cultura - que deseja consumir e, não obstante essa falha, fundamenta a sua opinião a partir de um campo outro que não o campo cultural. Ouvi alguém dizer, opinando sobre um texto da blogosfera: "eu acho o texto ilegível (até aqui tudo bem; muito provavelmente seria) e eu estou casado há 14 anos com uma ex-jornalista, portanto sei do que falo(?!)". Naquele momento, imaginei algumas "absurdidades": o Príncipe das Astúrias, herdeiro do trono espanhol, a dizer uma frase semelhante dentro de 10 anos ou, na nossa terrinha, o Presidente da Câmara de Sintra invocando Judite de Sousa (com mais propriedade, eventualmente, pois ela continua a ser jornalista. . .).
Ter uma licenciatura não dá competências para se ser professor. Ter um cargo de chefia não atribui competências para se ser chefe. Ter uma esposa ex-jornalista não oferece competências para se ser jornalista. Ainda para mais uma jornalista que o foi bem antes da comunicação ser veiculada por muitos canais, para além dos tradicionais; como se sabe, o medium molda formas e conteúdos!
Uma licenciatura, um cargo de chefia ou uma mulher/consorte ex-jornalista são recursos que podem ser mobilizados para muitas coisas (tantas!) e também para se ser alguma coisa. Mas são meras virtualidades. Para se ser na realidade - professor, chefe, jornalista ou crítico de Letras / de comunicação - é necessário o exercício no dia-a-dia de uma prática constante e consistente, acrescida da avaliação, pelos pares e pelos destinatários (os alunos, os subordinados ou os públicos) das práticas e dos seus resultados e, last but not least, ter capacidade de auto-reflexão vigilante quer sobre o exercício diário da profissão, da actividade ou do cargo quer sobre o produto desse exercício. É preciso ensinar e que os alunos aprendam, chefiar e criar coesão dentro de uma equipa, escrever peças jornalísticas que sejam lidas, discutidas, criticadas.
Aqui reside uma questão dos nossos dias: ter ou ser?
Instrumentaliza-se o ter para exercer pequenos poderes. Porque se não tem autoridade de ser, conquistada esta no decurso de uma trajectória de vida. Estes pequenos poderes auto-atribuídos emprestam, aos seus donos, arrogâncias de posse de verdades absolutas. E a sociedade portuguesa - com tantos déficits democráticos! - vai admitindo serenamente o exercício destes poderes pequeninos e falsos, sem que seja diga alto e bom som: "olhem, vai nu!".
Dizendo de outro modo, trata-se do fabrico caseiro e em série de formas de auto-legitimação de saberes a partir do vazio, de folhas de cartolina sem espessura. Um diploma não chega para saber ensinar; apenas abre portas a quem o detém para, se quiser, se se interessar e tiver condições, iniciar um longo caminho de professor-to-be, para, então, ter autoridade na matéria. Do mesmo modo, um contrato de casamento não abre as portas das competências no campo das Letras, nem o Despacho publicado em Diário da República nomeando um chefe atribui a este, por magia, saberes para coordenar pessoas e projectos. E, mais grave, trata-se simultaneamente de formas de hetero-legitimação porque as pessoas em volta se calam, deixando espaço livre a estes monstrozinhos que mais não são que efeitos perversos de uma democracia (ainda) não adulta.
A educação - pedagógica ou cultural - é uma forma de socialização. Por isso, só é possível num tempo longo - anos - e mediante uma apropriação directa, progressiva e reflexiva, i.e., uma aprendizagem. Caso contrário trata-se, na melhor das hipóteses, de adestramentos prêt-à-porter ao alcance de novos-ricos de todos os terrenos, que desembocam em exibições gritadas de caudas de pavão mal-atadas em rabos-de-ratos.
Também há, nesta nossa sociedade do séc. XXI, modos de auto-legitimação mais "clássicos ou tradicionais": pessoas que, sem nada terem feito na vida, auto-legitimam as suas "supuestas" competências a partir daquilo que os pais ou os avós fizeram ou foram. São os velhos-ricos-pobres e os baforentos títulos (burgueses, nobiliárquicos ou eclesiásticos) que os antepassados conquistaram e eles ostentam.
A mediatização social e o mercado de símbolos amplificam tudo o que é aparência transformando-a em imagens: diplomas do ensino superior, esposas ex-jornalistas, brazões ou comendas de bisavôs. Basta folhear revistas da imprensa dita cor-de-rosa: lado a lado encontramos condes e ganhadores de concursos televisivos, ex-porteiros de discotecas e médicos nutricionistas, prémios de literatura e ex-namoradas de ex-futebolistas. Tudo diferente mas tudo equivalente.
1. MUDE - Museu de Arte e Design inaugurado em Lisboa, no dia 21 de Maio, pelo Presidente da Câmara António Costa.
And the dreamers? Ah, the dreamers! They were and they are the true realists, we owe them the best ideas and the foundations of modern Europe(...). The first President of that Commission, Walter Hallstein, a German, said: "The abolition of the nation is the European idea!" - a phrase that dare today's President of the Commission, nor the current German Chancellor would speak out. And yet: this is the truth. Ulrike Guérot & Robert Menasse
sábado, maio 23, 2009
Do novo riquismo português. O mercado de símbolos.
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Vera Santana
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