sábado, maio 23, 2009

Do novo riquismo português. O mercado de símbolos.

Ainda a propósito de estratificação social, por um lado, e de recursos por outro (ver posts anteriores) importa pensar o actual novo-riquismo.

É, dizia-me um amigo aquando da inauguração do MUDE (1), a atitude da professora da Escola de Espinho que terá dito à mãe da sua aluna que ela, professora, é que estava na posse da razão - e não a mãe da aluna - pois ela, professora, possuía uma licenciatura.

É um chefe que, por o ser, torna indiscutíveis as suas opções e fecha as portas e os ouvidos aos seus subordinados ou colaboradores, dizendo "pode ser essa a vossa opinião mas eu é que decido".

É quem não tem competências para se apropriar dos produtos culturais - vulgo cultura - que deseja consumir e, não obstante essa falha, fundamenta a sua opinião a partir de um campo outro que não o campo cultural. Ouvi alguém dizer, opinando sobre um texto da blogosfera: "eu acho o texto ilegível (até aqui tudo bem; muito provavelmente seria) e eu estou casado há 14 anos com uma ex-jornalista, portanto sei do que falo(?!)". Naquele momento, imaginei algumas "absurdidades": o Príncipe das Astúrias, herdeiro do trono espanhol, a dizer uma frase semelhante dentro de 10 anos ou, na nossa terrinha, o Presidente da Câmara de Sintra invocando Judite de Sousa (com mais propriedade, eventualmente, pois ela continua a ser jornalista. . .).

Ter uma licenciatura não dá competências para se ser professor. Ter um cargo de chefia não atribui competências para se ser chefe. Ter uma esposa ex-jornalista não oferece competências para se ser jornalista. Ainda para mais uma jornalista que o foi bem antes da comunicação ser veiculada por muitos canais, para além dos tradicionais; como se sabe, o medium molda formas e conteúdos!

Uma licenciatura, um cargo de chefia ou uma mulher/consorte ex-jornalista são recursos que podem ser mobilizados para muitas coisas (tantas!) e também para se ser alguma coisa. Mas são meras virtualidades. Para se ser na realidade - professor, chefe, jornalista ou crítico de Letras / de comunicação - é necessário o exercício no dia-a-dia de uma prática constante e consistente, acrescida da avaliação, pelos pares e pelos destinatários (os alunos, os subordinados ou os públicos) das práticas e dos seus resultados e, last but not least, ter capacidade de auto-reflexão vigilante quer sobre o exercício diário da profissão, da actividade ou do cargo quer sobre o produto desse exercício. É preciso ensinar e que os alunos aprendam, chefiar e criar coesão dentro de uma equipa, escrever peças jornalísticas que sejam lidas, discutidas, criticadas.

Aqui reside uma questão dos nossos dias: ter ou ser?

Instrumentaliza-se o ter para exercer pequenos poderes. Porque se não tem autoridade de ser, conquistada esta no decurso de uma trajectória de vida. Estes pequenos poderes auto-atribuídos emprestam, aos seus donos, arrogâncias de posse de verdades absolutas. E a sociedade portuguesa - com tantos déficits democráticos! - vai admitindo serenamente o exercício destes poderes pequeninos e falsos, sem que seja diga alto e bom som: "olhem, vai nu!".

Dizendo de outro modo, trata-se do fabrico caseiro e em série de formas de auto-legitimação de saberes a partir do vazio, de folhas de cartolina sem espessura. Um diploma não chega para saber ensinar; apenas abre portas a quem o detém para, se quiser, se se interessar e tiver condições, iniciar um longo caminho de professor-to-be, para, então, ter autoridade na matéria. Do mesmo modo, um contrato de casamento não abre as portas das competências no campo das Letras, nem o Despacho publicado em Diário da República nomeando um chefe atribui a este, por magia, saberes para coordenar pessoas e projectos. E, mais grave, trata-se simultaneamente de formas de hetero-legitimação porque as pessoas em volta se calam, deixando espaço livre a estes monstrozinhos que mais não são que efeitos perversos de uma democracia (ainda) não adulta.

A educação - pedagógica ou cultural - é uma forma de socialização. Por isso, só é possível num tempo longo - anos - e mediante uma apropriação directa, progressiva e reflexiva, i.e., uma aprendizagem. Caso contrário trata-se, na melhor das hipóteses, de adestramentos prêt-à-porter ao alcance de novos-ricos de todos os terrenos, que desembocam em exibições gritadas de caudas de pavão mal-atadas em rabos-de-ratos.

Também há, nesta nossa sociedade do séc. XXI, modos de auto-legitimação mais "clássicos ou tradicionais": pessoas que, sem nada terem feito na vida, auto-legitimam as suas "supuestas" competências a partir daquilo que os pais ou os avós fizeram ou foram. São os velhos-ricos-pobres e os baforentos títulos (burgueses, nobiliárquicos ou eclesiásticos) que os antepassados conquistaram e eles ostentam.

A mediatização social e o mercado de símbolos amplificam tudo o que é aparência transformando-a em imagens: diplomas do ensino superior, esposas ex-jornalistas, brazões ou comendas de bisavôs. Basta folhear revistas da imprensa dita cor-de-rosa: lado a lado encontramos condes e ganhadores de concursos televisivos, ex-porteiros de discotecas e médicos nutricionistas, prémios de literatura e ex-namoradas de ex-futebolistas. Tudo diferente mas tudo equivalente.


1. MUDE - Museu de Arte e Design inaugurado em Lisboa, no dia 21 de Maio, pelo Presidente da Câmara António Costa.

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