quinta-feira, outubro 25, 2007

A MORTE DE JULIETA GANDRA NÃO FOI NOTÍCIA (V)



Comentário do Dia – 25 de Outubro de 2005
A morte de Julieta Gandra não foi notícia.
Pediram-me [PS Lisboa] um pequeno comentário, sobre uma notícia do dia, de um destes dias. Aceitei, como geralmente aceito, sem tabus ou preconceitos, os desafios construtivos e edificantes. Folheio páginas e páginas, cadernos e suplementos. Leio e releio jornais, revistas; gratuitos e pagos. As notícias sucedem-se. Há muitas letras grandes. Ofuscam. Não sei o que escolher.
Abstraio-me da necessidade imperativa de reagir ao imediato. Escolho uma não-notícia. A não notícia da morte de Julieta Gandra.
Esteve estas semanas em destaque na blogosfera a noticia da não notícia da morte de Julieta Gandra. E repare-se que podia facilmente ter sido noticiada. Afinal fora homenageada por António Guterres, que lhe atribuíra uma subvenção estatal em reconhecimento do seu papel na luta antifascista; recusara a Ordem da Liberdade oferecida por Jorge Sampaio e era personagem de louvor em Angola. De facto, podia ter sido notícia. Mas não foi.
Destaco este evento não porque Julieta Gandra tenha sido uma mulher com 90 anos de vida intensa, digna de um filme da melhor qualidade de argumento e produção; ou porque tenha sido uma permanente resistente antifascista, comunista, anticolonialista e feminista. Ou por ser mulher-médica, formada em medicina tropical e transformada em ginecologista e obstetra por necessidade humana (será quem introduz o parto indolor em Angola); culta, enciclopédica, que se interessava por tudo, viva, uma grande contadora de histórias, intima de Agostinho Neto, Lúcio Lara, Arménio Santos e tantos outros, em tantos lados.
Nem aqui a refiro por ter sido estupidamente presa pela PIDE, em 1959, acusada de ser militante do PCP, de ter dado jantar e 500 escudos a um membro ao MPLA (irá envolver-se num longo onde será, inclusive, defendida por Mário Soares). Nem ainda por ter sido considerada, em 1964, "presa consciência do ano", na primeira vez que um português receberia tão prestigiado galardão (curiosamente, será Mário Soares, em 1973, o segundo).
Nem tampouco a destaco por ter sido uma homossexual assumida, partilhando uma vida de felicidade a dois, com Fernanda Tomás, que, acasos da vida, conhecera na cadeia, em Caxias. Vejam e imaginem o que seriam duas mulheres assumirem uma relação dentro de uma cela de uma cadeia da PIDE cheia de presas do PCP. Sem dúvida um acto de transgressão máxima, como refere Maria Teresa Horta.
Não, mas não é por Julieta Gandra ter assumido a sua condição feminina, a sua paixão, a sua sexualidade, a sua escolha partilhar o futuro, com amor e coragem, com quem queria. Não é por ter decidido viver uma vida de transgressão permanentemente assumida; numa época onde os proibidos eram quotidiano e onde os prazeres se guardavam debaixo dos papeis em gavetas secretas, longe, distantes e esquecidos. Nem ainda por ser uma das ginecologistas percursoras do uso da pílula em Portugal ou por ter assumido a defesa de uma causa, de um país e um projecto, como fez por Angola e pelos angolanos.
Não. Relembro Julieta Gandra porque me aflige a perda da sua memória.
Bem sei que hoje o dia tem mais de 24 horas. Muito mais. Que o caudal informativo obriga a um consumo imediato de sondbites preparados e pré-formatados. De José Mourinhos, Santana Lopes ou Congresso do PSD. De Presidência Portuguesa, Tratado de Lisboa ou Liga dos Campeões. Sei da importância de tudo isso. Mas não chega. Há que saber inscrever, criar identidade. Recordar. Saber preservar a memória. Passar a palavra. Definir Cultura.
Há que não esquecer que a consciência colectiva de um povo se constrói no somatório das pertenças individuais (e institucionais) de quem partilha determinado espaço cultural comum. E a Julieta, pelo que era, partilhou esse espaço, connosco. Não a recordarmos, é esquecemo-nos de nós próprios. É não inscrever. Não existir.
Há que lembrar o que foi a conquista da Liberdade, da Política, da Democracia, da Sexualidade, do direito ao individualismo sem cláusulas ou barreiras de outros. Há que saber dizer e lembrar que Portugal tinha um campo de morte, no Tarrafal, onde morriam presos políticos. Há que saber dizer e lembrar que no condomínio de luxo que hoje se constrói no Chiado, torturavam presos políticos, nem há 40 anos. Há que não esquecer.
E afinal, como evoca Diana Andringa, Julieta era apenas: "uma militante feminista e anticolonial. Em tudo o que dizia e fazia estava presente que as mulheres são iguais aos homens, têm os mesmos direitos e os mesmo deveres, até o dever de pensar."
E não é essa uma luta de recordar? De tornar notícia? Muito mais que a próxima equipa do Benfica, ou do aparato policial da visita do Presidente Putin..
Recordem: Morreu em Outubro de 2007 Julieta Gandra. Médica, feminista, resistente antifascista e lutadora pela independência de Angola. Tinha 90 anos.
José Reis Santos

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