terça-feira, março 13, 2007

Salazar


Nos últimos tempos muito se tem escrito e dito sobre a possibilidade de Oliveira Salazar ser contemplado com um Museu em Santa Comba Dão. Gostaria de ter tido tempo de intervir nesta polémica, mas razões académicas não me tem permitido estar tão activo noutras frentes como gostaria de poder estar.
No entanto gostaria de dizer o seguinte. Não tenho nenhum tipo de problemas que Salazar tenha um museu (desde que não seja um templo) ou centros de estudos a si dedicados. Falamos de memória e de preservação de um espaço de herança cultural. Mas, da mesma maneira, acho inacreditável que, por exemplo, construam um condomínio fechado nas antigas instalações da PIDE, quando a alternativa era de aí erguer um Museu. Não podemos, sob o risco de valorizarmos a história e a perpetuação de memórias oficiais, defender num caso uma solução que é aplicável ao outro.
Salazar pode ter um Museu, claro. Também a PIDE.

Relembrei-me deste tema a ler nestes dois excelentes blogues (a casa de Usher e o Kontratempos) estes textos, do Tiago e do Ricardo. Alguns excertos.

Ricardo Revez, «a propósito dos acontecimentos em Santa Comba Dão»

Há uns dias, alguns membros da URAP deslocaram-se a Santa Comba Dão para se manifestarem contra a concretização daquela ideia. Uma manifestação de intenções pacíficas num país onde estas são perfeitamente legais. Porém, foram recebidos de forma bastante agressiva por um grupo misto de habitantes locais e apoiantes neo-fascistas ou neo-nazis.
Em relação a estes últimos, já era de esperar. Eles andam aí e aproveitam todas as oportunidades para aparecer. O que vale é que ninguém os leva a sério, o que não significa que não devamos estar sempre atentos. Nem sequer me parece que um líder como Salazar os fascine. Os verdadeiros salazaristas - no sentido de apoiantes do fascismo ou regime autoritário português (como lhe queiramos chamar) que vigorou entre 1933 e 1974 em Portugal - já morreram todos ou estão a caminho disso. Estes elementos da extrema-direita que foram aparecendo nos últimos 10 ou 15 anos são claramente influenciados pelo exemplo alemão de fascismo: revolucionário, viril, racista, não-católico, e que apresenta bastantes diferenças em relação ao caso português. No entanto, como aquele foi o regime autoritário ou fascismo que tivemos, não têm outra hipótese senão considerar-se como seus herdeiros, embora exagerando a ideia nacionalista até ao ponto do racismo e da xenofobia. Assim, podem jogar com os sentimentos de insegurança que grassam no país, sobretudo no que diz respeito à violência e crime urbanos, sem ter que invocar nomes cujo desprezo é universalmente mais unânime (ex: Hitler). Penso até que se estas pessoas vivessem 6 meses num regime de verdadeiras características fascistas, mudariam logo de opinião. Por vezes, as suas convicções parecem-me fruto de uma certa ingenuidade. Como a maioria já nasceu em democracia, julgam que com um regime fascista iriam ter um "best of both worlds". Mas não. Nesse tipo de regimes não há lugar para meios-termos. Gostaria de ver como reagiriam, se, após uma suposta expulsão de todos os estrangeiros e não-brancos de Portugal, e, assim, de uma inicial euforia, vissem que já não podiam reunir-se em grupo como gostam de o fazer, nem ter acesso aos livros, filmes e discos que gostavam de ler, ver e ouvir. Isto só para referir os aspectos que mais afectam os jovens, como eles são, na sua maioria.


Tiago Barbosa Ribeiro, «QUE FASCISMO PARA SALAZAR? - II» (excelente texto, bem documentado e sistematizado. Não totalmente completo mas um contributo de elevadíssima qualidade - se toda a blogosfera fosse assim, não havia jornais)

2. A quem possa interessar um pouco mais de pensamento proveniente das ciências sociais e menos de algumas sedes partidárias vagamente positivistas, existe efectivamente uma distinção entre grau e natureza nas diferentes ditaduras que emergiram no século XX europeu. Os conceitos de totalitarismo e autoritarismo não são simétricos. Designam obviamente sistemas repressivos, mas condições sociais, teóricas e ideológicas bem distintas. Os totalitarismos tiveram dois tipos-ideais, no sentido weberiano do termo, que foram o estalinismo e o nazismo. Conceptualmente, os totalitarismos afastam-se dos autoritarismos e consolidam-se como o grau superlativo de concentração do poder político, situando-se naquela «era das multidões» de que nos fala Gustave Le Bon. Ora, o fascismo italiano distingue-se de nazismo e estalinismo. E o salazarismo de todos eles.
3. O historiador Zeev Sternhell avança com a fórmula «Ni Droite, ni Gauche» (1983) para desmontar as bases do fascismo, sustentando que o fenómeno é tanto uma síntese da revisão antimaterialista marxista como uma recusa do universalismo liberal de Kant, de Rousseau e dos enciclopedistas. A recusa dos valores do século XVIII encontra-se matricialmente relacionada com o nacionalismo biológico do fascismo, extremamente vigoroso na apropriação política do temor com que as classes médias reagiram à possibilidade de expansão do comunismo na Europa e ao culminar da crise económica da década de 1920, que veio intensificar uma proletarização que já se iniciara com a guerra. Produto tardio das sociedades em modernização, como já foi escrito, o fascismo é a resposta de angústia das novas nações operárias contra as velhas nações imperialistas. Os fascismos são regimes monopartidários com propriedades históricas e sociais comuns a vários países. Mas substancialmente diferente daquilo que é o fascismo-movimento, revolucionário e secular, plebeu e miliciano, subversivo das ordens liberal e marxista, o fascismo-regime implicou lógicas de compromisso com a burguesia, o exército e a Igreja.4. Essa cristalização de um movimento que animava as massas em torno de uma ideologia anticlerical, idealista e mítica, provocou o redimensionamento do seu programa totalitário e quedou o regime por práticas autoritárias enquadradas por um nacionalismo modernizador e expansionista, ao contrário de outros nacionalismos autoritários, conservadores e integradores, como o Estado Novo. Procurando substituir as tradicionais representações políticas e sociais que se encontram em crise após 1917, o fascismo é um fenómeno multicausal na expressão do descontentamento de classes médias polarizadas, a quem o seu tempo convoca o detrimento da liberdade em função da segurança. Veneradoras da ordem, da estabilidade e de uma coesão social tradicionalmente preservada entre o mecânico e o desigual, essas classes foram inicialmente mais permeáveis ao programa que os Fasci di Combattimento impuseram em Itália, servindo de modelo a muitos outros países europeus.

9. Onde fica o salazarismo no meio de tudo isto? Com o golpe militar de 1926, sem supresa, o programa antidemocrático que inicialmente se afirmara como reformador da República vai denunciar os processos de transformação da modernidade pela «excepcionalidade» da crise portuguesa e reclamar a «salvação da pátria» com um governo forte e restauracionista, o terreno orgânico de Salazar. No seio da Ditadura Militar vão congregar-se diferentes direitas da direita antiliberal. Aí encontraremos monárquicos que militaram contra a República até republicanos antidemocráticos, mas a disputa faz-se essencialmente entre a direita católica representada pelo Centro Católico de Coimbra e entre a direita integralista, doutrinariamente próxima da utopia passadista do Antigo Regime e de um ultramontanismo feroz.

1 comentário:

Ricardo Revez disse...

Texto de Tiago Barbosa Ribeiro muito bom. Três apontamentos: a teoria do Sternhell tb é a da minha preferência (ver Nascimento da Ideologia Fascista, obra que recenseei no seminário de mestrado); arranjei há pouco tempo um livro dele chamado Contra a Democracia a Ideologia da Decadência, sobre relações entre decadentismo e aparecimento dos fascismos; é a primeira vez que vejo alguém do século XX a citar Gustave Le Bon, o que é sempre de salutar.

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