sábado, fevereiro 16, 2008

Reflexão


Num momento como este não posso deixar de reflectir sobre duas propostas políticas decorrentes de diferentes conceitos de, chamemos-lhes assim, pluriculturalidades, em menos de uma semana, ambas europeias, se bem que a 1ª de uma Europa Protestante, periférica por vontade própria, insular e monárquica e a 2ª de uma Europa de origem Católica, laicizada, republicana e central, política e geograficamente.

O Anglicano Arcebispo da Cantuária propõe a coexistência de dois universos legais num mesmo território: a sharia, para os muçulmanos, o enquadramento legal britânico para os súbditos ingleses. O que poderá querer dizer que os muçulmanos são, não súbditos de Sua Majestade, mas súbditos de Allah. A relação entre súbditos e (respectivos) monarcas parece prevalecer (feudalmente?) sobre a inscrição territorial. Um recente inquérito à população muçulmana indica que uma parte significativa é negacionista no que ao Holocausto dos judeus diz respeito. Holocausto que a Grã Bretanha combateu. Não haverá aqui um paradoxo? Questionamo-nos sobre os interesses económicos e financeiros colectivos que estarão por detrás desta tomada de posição anglicana e inglesa, interesses que, é um dado inegável, ao serem bem defendidos, poderão contribuir largamente para a manutenção de uma civilização.

Talvez em resposta a esta posição, o Presidente Sarkozy propõe que o Holocausto seja relembrado em França. Já sabíamos que a França legislara medidas anti-negacionistas. Sabemos que a mortandade de judeus na II Guerra Mundial foi muito significativa e sabemos das origens judaicas do Presidente Sarkozy. A inscrição territorial “imaginada” e legitimada n´O Livro Religioso, a Torah, de um povo então em diáspora – a nação judaica – parece poder conviver com a inscrição territorial real: a França enquanto nação. De facto, assim aconteceu, com muita dor, muita ruptura, muita proscrição, muita estigmatização dos judeus pelos europeus. E com a guetização dos judeus, não obstante a contribuição económica e cultural destes na formação da europeidade. O gueto não vai, naturalmente, repetir-se na Europa porque foi enviado para a península arábica onde, por sua vez, é um guetto que guetiza outros povos, proibindo-lhes, nomeadamente o acesso à água potável.

Por outro lado, a utilização das emoções das crianças das escolas francesas – pelo apadrinhamento, por cada uma, de um/a menino/a morto/a no Holocausto – segue o padrão dos piores programas televisivos da última década. Questionamo-nos sobre os interesses económicos e financeiros colectivos que estarão por detrás desta tomada de posição francesa, interesses que, é um dado inegável, ao serem bem defendidos, podem contribuir largamente para a manutenção de uma civilização.

Se a política pragmática é importante para a continuidade de uma civilização, os princípios fundadores de qualquer civilização são-no de igual modo, sob pena desta ficar reduzida a bens de consumo deixando de ser uma civilização e passando a ser uma feira popular ou um supermercado gigante, o que é a negação do próprio conceito de civilização. No caso britânico, perguntamo-nos qual o espaço que é dado às noções de cidadania e de universalidade? Qual a relação desejável entre multiculturalismo e cidadania? No caso francês, nação que impediu o uso do tchador nas escolas, dando prevalência à noção de sociedade / universalizante sobre a noção de comunidade / particularizante, qual o significado simbólico de levar crianças vivas a apadrinhar crianças mortas? Melhor fora apadrinhar crianças vivas enquanto elas o estão.

E o que acontece quando uma menina de 11 anos inglesa conversa com uma menina de 11 anos francesa, no Verão, numa praia, eventualmente algarvia (em Portugal)? “Sabes, uma amiga minha, a Faranaz, foi agora excisada, diz a inglesinha. Os Pais fizeram uma grande festa porque é um acontecimento que, entre muçulmanos, faz da Faranaz uma mulher que já pode casar-se.”. “Ah! Que coisa horrível; é uma mutilação! Diz a francesinha. As meninas muçulmanas da minha escola não podem sequer tapar a cara porque os professores querem vê-las, quanto mais serem sujeitas a coisas dessas que levariam os Pais a serem castigados pelos Tribunais. Sabes, eu sou madrinha do Samuel, um menino judeu que vivia em Aix-en-Provence, escondido numa escola francesa, usava o nome falso de Nicholas e era órfão de pais austríacos judeus. Tocava violino e tinha 13 anos quando morreu às mãos dos nazis, há mais de 60 anos.” ...

A cidadania e o pluriculturalismo são noções cujas relações actuais, nomeadamente na Europa em construção, têm de ser repensadas, sem preconceitos nem chavões que mais não fazem do que esconder realidades para as quais temos de olhar de frente. Comunidades diversas a viverem num espaço comum exige muita reflexão. Modos de ver e de estar diversos transportam potenciais conflitos. Em democracia, as diferenças têm direito a expressão e os conflitos são reguláveis. E não podemos nem devemos negar as nossas noções europeias herdadas da Grécia, de Roma, da Renascença e, mais recentemente da Revolução Francesa, nem obrigar crianças a carregar, às costas e dentro do coração, cadáveres com nomes próprios e biografias concretas. Se se trata de defender interesses económicos e financeiros colectivos de uma Nação – a Britânica - ou de um conjunto de nações – a Europa continental, talvez fosse importante não apenas acertar objectivos, estratégias e tácticas como delas dar amplo conhecimento às pessoas que constituem a Europa ou as Europas.

Que Europa queremos construir? Que europeus queremos ser?

Vera Santana
Socióloga e socialista

Lisboa, 14 de Fevereiro de 2008

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