Maria Inácia Rezola, «Os militares na Revolução de Abril. O Conselho da Revolução e a transição para a democracia em Portugal (1974-1976)», Lisboa, 2006, Campo da Comunicação, 526 páginas.
É importante que o trabalho de qualidade superior produzido nas universidades e nos institutos científicos seja exposto e retirado do milieu universitário e posto em circulação geral. Este trabalho corria o risco de poder apenas ser solicitado, e em versão policopiada, em algumas bibliotecas de algumas universidades (ou na Biblioteca Nacional). Em boa hora a editora «Campo da Comunicação» impediu que seguisse esse rumo dando à estampa esta versão adaptada da monumental tese de doutoramento de Maria Inácia Rezola que assim vê, e bem, a luz do dia.
É importante que o trabalho de qualidade superior produzido nas universidades e nos institutos científicos seja exposto e retirado do milieu universitário e posto em circulação geral. Este trabalho corria o risco de poder apenas ser solicitado, e em versão policopiada, em algumas bibliotecas de algumas universidades (ou na Biblioteca Nacional). Em boa hora a editora «Campo da Comunicação» impediu que seguisse esse rumo dando à estampa esta versão adaptada da monumental tese de doutoramento de Maria Inácia Rezola que assim vê, e bem, a luz do dia.
É difícil apreciar ou recensear um trabalho quando a sua apresentação (pp. 21-22) beneficia da sapiência e da arte de alguém como António Reis, orientador da Maria Inácia Rezola, figura cara da historiografia contemporânea portuguesa e principal prossecutor da temática da transição portuguesa, afinal tema indirecto aqui em análise. Nas suas apreciações, António Reis considera ser esta «a melhor e mais completa obra da historiografia portuguesa sobre o processo revolucionário desencadeado pelo movimento militar de 25 de Abril» (pp. 21), conseguindo a autora proporcionar «a pesquisa e interpretação mais aprofundada e actualizada do tão controverso 25 de Novembro» enquanto «desmonta a visão clássica de um CR como “motor da revolução”, fazendo avultar a tensão contraditória, que percorre este órgão político-militar, entre a sua função de garante da transição para uma democracia representativa pluralista e o seu papel de vanguarda de uma revolução socialista concebida segundo modelos de natureza diferentes».
O tema apreciado, o Conselho da Revolução, já indirectamente por outros tratado, carecia de uma análise mais sistematizada e isenta, de uma visão académica que o retirasse da mera abordagem memorialista ou vivencial. É essa a ambição, plenamente conseguida, da autora.
Partindo dos trabalhos prossecutores de António Reis[1], Maria Carrilho[2] ou de José Medeiros Ferreira[3], para apenas citar alguns, e das muitas memórias entretanto produzidas[4], Maria Inácia Rezola apresenta-nos uma obra de conjunto sobre o PREC como vivido no seio de um dos seus principais actores, o Conselho da Revolução (CR). É através da sua evolução política, militar e ideológica que atravessamos o furacão da transição portuguesa, hóspedes no olho da tempestade. É, então, desta pole position, verdadeira linha da frente, que somos convidados a entrar nesse Portugal em transe, e reviver nesse decisivo ano de 1975 a miríade possibilista e utópica que se oferecia à transição portuguesa. Seguimos as tácticas, as estratégias, os planos, as intentonas, os quases e os ses conforme se vão desenrolando junto dos principais intervenientes.
É esta uma das grandes virtudes do livro e simultaneamente um dos seus aspectos inovadores. A autora, jogando com a natureza e complexidade do tema, consegue identificar muito bem o objecto de estudo – o CR, órgão institucional de enquadramento legal e temporal definido – e inseri-lo na trama anarca e imprevisível do PREC de forma a que, confundindo-se com ele, aparente ser simultaneamente tormenta e bonança. Neste período decisivo da história portuguesa, quando tudo se joga e tudo é possível, onde máscaras se cruzam e circulam entre actores e figurantes, entre prima donnas e contratados, não é tarefa fácil a sustentação de um enredo consistente que não seja apenas cronológica e descritiva. Maria Inácia Rezola consegue transportar-nos para as decisões genéticas da democracia portuguesa contemporânea quando elas estão e ser tomadas, e fá-lo de uma forma clara e desafiadora. O seu estilo é contagiante na medida em que articula, no texto, um encadeamento inteligente de pré-análises, previsões e sínteses estrategicamente colocadas de forma a nos envolver na trama devolvendo-nos ao espaço a preto e branco do nosso imaginário colectivo, onde se partilhavam fartas cabeleiras, calças à boca-de-sino, sonhos e utopias possíveis.
Apreciando um órgão colectivo, uma das principais preocupações da autora foi a de nos apresentar um CR longe das tradicionais apreciações unitárias e compactas. Pelo contrário, a ideia que se retêm é a de estarmos perante um corpo confuso, orgânico e evolutivo, muitas vezes à deriva, inconsequente e desorientado. Fica-se com a sensação que o CR é apanhado entre o que queria, o que podia e o que devia ser. É o motor da revolução ou apenas o seu garante? É a vanguarda inovadora e desafiadora ou a retaguarda pacífica e equilibradora? É interventivo ou distante? É revolucionário ou institucional? É actor ou árbitro? É nestas contradições que encontramos a verdadeira natureza do CR. A verdade é que foi todas elas pelo menos uma vez. A verdade é que tentou ser todas, em simultâneo.
Temos de entender que CR é um corpo estranho no contexto das clássicas transições de regime, geralmente resolvidas via convocação de Assembleias Constituintes com plenos poderes e outorgas constitucionais de cúpula (quer por via referendária, plebiscitária ou outra). É por aí que a autora nos introduz no tema, através se uma «Introdução» (pp. 31-44) exemplar, onde contempla «Estado da questão» e o «processo português em debate». Aí, logo no início do livro, a «originalidade portuguesa» é bem captada através de uma breve resenha dos principais modelos das teorias de transição e da constatação que órgãos da matriz do Conselho da Revolução, não são apenas invulgares, são inexistentes. O normal é o Poder ser concentrado nas mãos dos militares ou em quem comanda a transição de regime, através de ditaduras militares ou civis; ou ser delegado para instituições competentes, como Assembleias Constituintes; ou, ainda, outorgado em textos constitucionais sufragados (ou não). O caso português é único.
O Livro
Segue a clássica divisão cronológica dos acontecimentos. Parte do 28 Setembro, tem apeadeiros no 11 de Março, no pacto MFA-Partidos, nas eleições para a Assembleia Constituinte, na Assembleia de Tancos (para citar algumas estações), e termina no 25 de Novembro. A tese, na sua versão completa tinha ainda uma primeira parte que vai do 25 de Abril ao 28 de Setembro e uma última que percorre desde o 25 de Novembro à tomada de posse de Ramalho Eanes, em Julho de 1976. Os quatro capítulos que constituem a obra seguem a cronologia.
O primeiro intitula-se «Do 28 de Setembro e o 11 de Março: o debate acerca da institucionalização do MFA» (pp. 45 a 120), e debruça-se sobre as interrogações sentidas, no seio do MFA quando este se vê confrontado com a necessidade de ter de ter um papel mais activo, mais interventivo no processo de transição desencadeado a 25 de Abril. Spínola falhara, claramente, e uma nova solução urgia. Esta é uma fase pouco definida da nossa transição (entre Setembro de 1974 e Março de 1975). De certa forma, apesar de Spínola não ser consensual nem abrangente, a verdade é que ao tomar as rédeas do golpe de 25 de Abril reduz em si, as propostas de transição, condicionando-a. Apesar das já existentes tensões político-militares e dos conflitos, é o então Presidente da República quem dirige o processo até ao 28 de Setembro, quando é afastado. Ausente esta figura tutelar, nomeado Costa Gomes para a Presidência e empossado novo governo provisório (o III), havia que (re)definir estratégias. A bem ou a mal Spínola tinha um plano. Qual seria o novo plano? Eleições para uma Constituinte? Ditadura militar? Que papel para o MFA? E para os Partidos? Que novo regime a erguer?
O MFA, de certa forma não o prevendo, terá então de assumir a liderança da transição, e três questões imediatamente o assolam: que novo rumo ao processo em curso, que papel estava reservado para o MFA, como resolver o problema eleitoral e da participação dos partidos políticos.
Parte destas questões são respondidas na segunda parte, «Institucionalização do MFA: o Conselho da Revolução, o pacto com os partidos políticos e as eleições» (pp. 127-188). Nesta são apresentados os resultados dos debates e reflexões sobre a institucionalização do MFA, sendo as suas propostas exaustivamente analisadas pela Maria Inácia Rezola, destacando-se a minúcia e a atenção ao pormenor da autora. Aí desmente-se a causalidade do 11 de Março em relação à criação do CR. É verdade que acabam por ser razões exógenas, como factores reactivos, que estão na origem da institucionalização do MFA. Mas não é o 11 de Março que impõe a necessidade do CR. Essa urgência é sentida, pelo menos, desde o 28 de Setembro, e por todo o espectro político-militar. António Reis identifica bem esta origem quando diz que «a institucionalização do MFA, longe de ter sido produto da escalada da sua facção “gonçalvista” correspondeu antes à consciência generalizada da debilidade dos partidos políticos e da fragilidade da democracia» (pp. 21).
O 11 de Março, e em específico a «Assembleia Selvagem» que se lhe seguiu, obrigou a uma reestruturação na composição orgânica do MFA e do Estado – extingue-se a Junta de Salvação Nacional (JSN) e o Conselho de Estado, com os seus poderes concentrados no CR. A formação original deste, de 25 elementos (deveriam ser apenas 24, mas problemas nas indicações do Exército levaram a que fosse necessário mais um conselheiro), é então a seguinte «a) Presidente da República, b) Chefe e vice-chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, c) Chefe dos Estados-Maiores dos três ramos das Forças Armadas, d) o comandante-adjunto do COPCON, e) Comissão Coordenadora do Programa do Movimento das Forças Armadas, constituída por três elementos do Exército, dois da Armada e dois da Força Aérea, f) oito elementos a designar pelo Movimento das Forças Armadas. Sendo quatro do Exército, dois da Armada e dois da Força Aérea. 2. do Conselho da Revolução fazem também parte todos os membros da Junta de Salvação Nacional (…). 3- o Primeiro-ministro, se militar, será igualmente membro do Conselho da revolução« (pp. 137). Cria-se também a Assembleia do MFA.
Nesta segunda parte é ainda seguida a questão eleitoral, resolvida a 11 de Abril de 1975, com a assinatura da Plataforma de Acordo Constitucional entre o MFA e os principais partidos políticos (PS, PPD, PCP, CDS, MDP/CDE, FSP). O vulgo pacto MFA – Partidos põe termo a uma série de incertezas que poderiam entravar e alterar o processo de transição e culminam duras negociações entre as partes (onde nem todos os partidos envolvidos acabam por assinar). Assim, a 25 de Abril de 1975, justo no prazo prometido pela JSN na madrugada de 26 de Abril de 74 (onde promete a realização de eleições no prazo máximo de 1 ano) e ao arrepio de algumas opiniões, realizam-se eleições para a Assembleia Constituinte.
Este segundo capítulo, riquíssimo de acontecimentos históricos, aflora ainda a questão das primeiras nacionalizações (banca e seguros), a passagem do III para o IV Governo Provisório (fruto do 11 de Março, da criação do CR e das medidas nacionalizadoras) e a campanha eleitoral para a Assembleia Constituinte (onde a posição do MFA é, no mínimo, já algo inconstante, errática e oscilante). O CR, já demonstrando algumas das características identificáveis no futuro (líder do processo de transição, atitude interventiva) e algumas das suas contradições internas (ver por exemplo o comportamento perante a campanha eleitoral) é ainda um novo actor, não muito definido e de quem tudo se espera.
A III parte, «o CR na vanguarda do processo revolucionário (Maio – Agosto 1975)» (pp. 189 – 362), apresenta-nos o objecto de estudo no seu maior fulgor, quando o CR lidera, inequivocamente, o processo revolucionário em curso. Este é o periodo-chave da transição. É a peça central do livro. É quando tudo está em jogo. A autora até então tinha-se preocupado em nos apresentar as diferentes peças deste complexo puzzle, de forma sistemática, consistente e com alguma análise, como que preparando-nos para este momento. Agora, já com os motores acelerados, somos catapultados para o Verão Quente de 1975, viajando, sem cinto, a velocidade pouco recomendável. É a preparação anterior que nos impede do despiste eminente.
Numa sucessão impressionante de eventos, encontramo-nos já em período pós eleitoral, com a Constituinte eleita com resultados pouco antecipados (O PS ganha com 37%, o PPD alcança 36% e o PCP apenas consegue 12% dos votos), e onde os principais partidos políticos (em especial o PS), ainda tímidos e mesmo defendendo o Pacto MFA-Partidos, não se coíbem de galgar parte do terreno perdido, confrontando a existente legalidade revolucionária com a emergente legalidade eleitoral. O CR, anteriormente beneficiando de um período de maior fragilidade partidária (por várias razões), é agora confrontado com um decisivo regresso dos partidos políticos, logo quando tinha tomado para si a liderança do processo revolucionário (e o queria definir).
Neste capítulo vagueamos pela questão do modelo sindical (o debate sobre a Unidade ou Unicidade arrastava-se desde 1974, sendo finalmente resolvido por intervenção do CR a 30 de Abril, decidindo pela proposta patrocinada pelo PCP, a da uma única Central Sindical), pelo Caso República (razão pela qual PS – e de arrasto o PPD – sai do governo) e pelo agudizar do Caso Renascença. Debatem-se os partidos políticos (pp. 190-231) e que possíveis sociedades se quer construir, como e por quem. Aponta-se para socialismos, para vários socialismos. Nestas questões a fractura já detectável entre PS e PCP expõe-se. No entanto, este não é um jogo a duas mãos. Nem a três (CR). O caldo da transição portuguesa é, neste aspecto, bem saboroso, e a autora, na forma como nos apresenta o desenrolar da trama, aguça-nos o apetite.
A segunda parte do capítulo (pp. 233 – 278) procura seguir as diferentes definições de «via socialista» que se preparavam. Todos queriam o socialismo, e «à portuguesa». É a «epidemia de planos». Aí adensam-se as posições dos diversos actores em cena, distinguindo-se pouco os principais dos figurantes, os residentes e os convidados. Partido Socialista, Grupo dos 9, 5ª Divisão, COPCON, Região Militar do Norte, EPAN, Assembleia do MFA, Conselho da Revolução, PCP, extrema-esquerda, Helsínquia, Partido Popular Democrático, Região Militar Centro, MDLP, Igreja Católica, MES, Exército, RALIS, Assembleia da Armada, PCP-BR, CIA, NATO, Angola, URSS, Tancos, Paras, Fuzas, Comissões de Moradores, Assembleia Constituinte, MRPP, CODICE, SUV, SDCI, FUR, Intersindical, Expresso, O Jornal, Diário de Noticias, Partido Comunista Português, CAP, CEMGFA, Comités de Defesa da Revolução, Álvaro Cunhal, Mário Soares, Costa Gomes, Vasco Gonçalves, Eurico Corvacho, António Reis, Otelo Saraiva de Carvalho, Carlucci, Sá Carneiro, Isabel do Carmo, Ramalho Eanes, Spínola, Sottomayor Cardia, Emídio Guerreiro, Pires Veloso, Ramiro Correia, Mota Pinto, Pinheiro de Azevedo, Freitas do Amaral, Melo Antunes, Fabião, Martins Guerreiro, Almada Contreiras, Joao Cravinho, Vasco Lourenço, Rosa Coutinho, Marcelo Rebelo de Sousa, etc. Siglas, nomes, partidos, ministros, jornais, países, manifestações, confrontos, ideias, projectos. Quem é quem? Quem importa? Quem dirige? Quem comanda? Para onde se quer ir, e com quem? «O Povo está com o MFA», Plano de Acção Politica (PAP), Documento-guia Povo-MFA. IV governo. V governo. VI governo. PREC.
Na anarquia aparente o CR fragmenta-se, não conseguindo apresentar soluções consistentes. A falsa aparência externa de bloco consistente, dominador da situação e depósito da autoridade é exposta quando se torna público que o CR não controla nem o aparelho do Estado nem as Forças Armadas. É notório, pelo menos desde o caso República que o CR não controla o COPCON e Otelo, pelo menos. São visíveis as divisões internas no seio do motor da revolução. É óbvio que o próprio CR por querer fazer o impossível, por pretender conjugar o melhor dos dois mundos – casar a legalidade eleitoral e institucional, com a legitimidade revolucionária almejando assim construir a «via original para o socialismo português» –, seria inevitavelmente sempre apanhado a meio caminho, na indefinição da escolha. Essa fragilidade, é detectada e aproveitada pelos restantes actores. Da crise política decorrente do caso República PS e PPD deixam o governo. O V Governo surge como reacção a um necessidade crescente – afastar os partidos e puxar os militares ao poder. O grupo dos nove surge por necessidade própria como reacção à corrente gonçalvista e contra alguma influência do PCP no CR. É com um CR «inequivocamente dividido» (pp. 358) que termina o III capítulo.
O PREC, que julgávamos já fora de controlo, sofre impressionante aceleração quando entramos no final do Verão de 1975 e, consequentemente, no último capítulo. A IV parte, «uma vanguarda crescentemente questionada (Setembro – Novembro de 1975)» (pp. 365-495) leva-nos aos decisivos momentos do 25 de Novembro, e começa com uma interessante interrogação: «quem comanda a Revolução?» (pp. 365). Esta é uma táctica muitas vezes utilizada pela autora, que nos cativa com as suas próprias questões, envolvendo-nos ainda mais na densidade da história. Nesta parte seguimos a decisiva Assembleia de Tancos, o aparecimento do Grupo dos 9, o afastamento de Vasco Gonçalves, o final do V governo, a autocrítica revolucionária do COPCOM, a criação da Frente Unida Revolucionária (FUR), a crise de Poder, as conversações em volta da construção do VI governo provisório, o convite a Carlos Fabião para encabeçar o VI governo.
É um Outono escaldante. Manifestações dia sim – dia sim. O Cerco à Constituinte. A greve do VI Governo. O 25 de Novembro acaba por ser um episódio caricato, decisivo, que permite clarificar o confronto final. A disputa aparente entre PS (legalidade eleitoral) e PCP (legalidade revolucionária) revelara-se incompleta. Há outros envolvidos: a extrema-esquerda, pelo menos. Esta é a parte decisiva do livro onde a autora se move pelas indecisões, avanços e recuos dos principais actores com um à vontade contagiante. É interessantíssimo seguir o papel de um Otelo Saraiva de Carvalho, nestes últimos meses, um Costa Gomes, um Rosa Coutinho ou um Vasco Lourenço. É pelos olhos destes conselheiros que somos transportados para o embate final e é aqui que a autora nos brinda com «a pesquisa e interpretação mais aprofundada e actualizada do tão controverso 25 de Novembro». Só lendo.
Por fim nas 13 conclusões apresentadas (pp. 499-514), Maria Inácia Rezola sintetiza, contextualiza e matiza o seu trabalho. Reafirma a indisposição original do Movimento dos Capitães em institucionalizar o MFA e transformá-lo «num agente político institucionalizado da nova ordem», e diz que até Setembro de 1974 o grosso da luta política é travado no seio das próprias Forças Armadas. Identifica o 28 de Setembro como data-chave para o início do debate sobre a institucionalização do MFA e para os «primeiros confrontos públicos entre os defensores da legitimidade revolucionária e da eleitoral», confrontos esses que se agudizarão com a realização das eleições para a Assembleia Constituinte. Destaca o 11 de Março como data de clarificação militar (com a criação do CR) e a eleição para a Assembleia Constituinte como momento decisivo para uma definição programática do CR, uma vez que já se institucionalizara o MFA e se realizara as eleições. Interroga-se, a esta altura, sobre quais as reais motivações para alguns partidos assinarem o Pacto MFA-Partidos. Assume ainda que a «autonomização do Grupo dos Nove deve ser interpretada como uma reacção à tentativa de hegemonização (…) pelas restantes facções do MFA» e que é a partir de Tancos que o papel dos partidos políticos «adquire nova dimensão», não retirando, no entanto, «esta crescente importância (…) o protagonismo aos militares e o CR mantém-se no comando do processo». Por fim, reconhece que o 25 de Novembro «constituiu um momento-chave do processo de transição para a democracia», abrindo este a «última fase do processo de transição».
O que falta? Falta o que está na tese e não chegou a ser publicado (entre Abril e Setembro de 1974 e a do 25 de Novembro à tomada de posse de Ramalho Eanes e que, segundo sabemos, já tem publicação agendada), falta a continuação do trabalho, acompanhando a evolução do CR até 1982. Faltou, talvez, uma melhor exploração de algumas dimensões: a importância da rede de relações internacionais; a questão africana e a descolonização; a questão social e económica (muito enfoque nas questões militares e políticas); a dimensão partidária. Atente-se que não são fraquezas que apontamos, mas «pontos soltos», de interesse impar que nos motiva a pesquisa. Como estes exemplos, e derivado do detalhe da obra, esmaga a quantidades de linhas de investigação, muitas monográficas, a seguir no futuro: a 5ª Divisão, as Associações de Moradores, o SDCI, a Assembleia Constituinte, etc. A fraca bibliografia será corrigida na segunda edição, já em preparação.
É em suma, refrescante ver o PREC tratado por alguém que ande hoje pelos 30 anos e que não os tenha tido há 30 anos. É esse olhar atraente, desinteressado e curioso que percorre o livro, impressionada que está com o PREC, esse todo fragmentado em pequenos nadas. É devastadora a quantidade de informação recolhida e utilizada na descrição detalhada dos principais acontecimentos, conseguida através de uma intensa recolha bibliográfica (detectada nas notas de rodapé) e consulta de vastas fontes primárias. Destaque-se ainda o acesso privilegiado às actas do CR e o prefácio de José Pedro Castanheira, onde percorre com candura os principais acontecimentos dos 229 dias do que se convencionou chamar PREC.
Um povo sem história é apenas tribo. Não pensa em conjunto, não sonha, não projecta. Resume a sua existência à reprodução. A Maria Inácia Rezola, com este livro, contribuiu e muito, para que o nosso cimento colectivo seja mais espesso, mais agregador, capaz de inscrever (e não de apenas reproduzir).
Maria Inácia Rezola é investigadora do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, doutorou-se em História Institucional e Política Contemporânea pela mesma Universidade. É docente na Escola Superior de Comunicação Social do Instituto Politécnico de Lisboa e publicou várias obras, entre as quais distinguimos: «O Sindicalismo Católico no Estado Novo, 1931-1948», Editorial Estampa, Lisboa, 1999 e «António de Spínola. Fotobiografia», Museu da Presidência da República, Lisboa 2006.
José Reis Santos
[1] «Portugal Contemporâneo», 6 volumes, publicações Alfa. Lisboa, 1990.
[2] «Forças Armadas e Mudança Política em Portugal no Século XX», Lisboa, Imprensa Nacional, 1985
[3] «Ensaio Histórico sobre a Revolução do 25 de Abril. O Período pré-constitucional», Alfa, 1990 e «Portugal em transe» in Historia de Portugal, volume 8, direcção de José Mattoso, Circulo de Leitores, 1993.
[4] Entre outras destacamos de Marcelo Rebelo de Sousa (A Revolução e o nascimento do PPD, 2 volumes, Lisboa, Bertrand Editora, 2000); Diogo Freitas do Amaral (O Antigo Regime e a Revoluçao – Memórias Politicas (1941 – 1975). Lisboa, Bertrand, 1995); e as produzidas por entrevistas de Maria Joao Avilez (Soares: Democracia. Lisboa, Publico, 1996; e Soares: Ditadura e Revolução. Lisboa, Circulo de Leitores, 1996) e Maria Manuela Cruzeiro (Costa Gomes, o último Marechal. Lisboa, Editorial Noticias, 1998; e Vasco Gonçalves, um General na Revolução, Lisboa, editorial Noticias, 2002)
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