quarta-feira, dezembro 05, 2007

Intermitentes


Andei pela blogosfera à procura do artigo do Mario Vieira de Carvalho, no Público de 3 de Dezembro. No jornal estava só para assinantes, na blogosfera, apesar de muitos «agentes culturais» a povoarem, nada.
Pedi a um amigo que o tinha.
Aqui vai. Depois escrevo sobre o assunto.

Sobre o Estatuto do Artista
A nova lei acaba com a situação de indefinição de direitos e deveres que existia nesta matéria
A especificidade da actividade dos artistas de espectáculos públicos, quando exercida em moldes subordinados, exigia desde há muito um quadro legal que a contemplasse adequadamente e desse resposta cabal aos principais problemas que afectam os profissionais do sector. O novo regime laboral para os artistas agora aprovado pela Assembleia da República consagra essa especificidade. A actividade dos artistas passa a poder ser regulada por um contrato de trabalho especial, que remete apenas subsidiariamente para o Código do Trabalho.
Quem é considerado "artista"? A nova lei recorre a um duplo critério, que procura conciliar actividades muito diferentes e heterogéneas com a necessidade de valorizar e defender os profissionais de créditos firmados. Demasiada indefinição e abertura ou, pelo contrário, rigidez excessiva são evitadas através do cruzamento entre a mera exemplificação de profissões artísticas e a possibilidade de registo ou acreditação facultativos na Inspecção-Geral de Actividades Culturais (em termos a regular por portaria do Ministério da Cultura).
Como se constitui o vínculo laboral? Por contrato de trabalho, qualquer que seja a natureza jurídica do empregador. Num meio actualmente dominado pelos "recibos verdes" (regime precário de prestação de serviços), a presunção de contrato do Código do Trabalho é reformulada segundo um enunciado mais adequado à especificidade da actividade artística quando exercida numa relação de dependência económica e de direcção do empregador.
Que tipos de contrato de trabalho são previstos? Sem termo, e a termo certo e incerto. Contudo, nos contratos a termo certo, dada a natureza extremamente dinâmica do campo artístico, com produções e compromissos de duração, complexidade e continuidade muito variadas, exige-se a forma escrita e, em caso de renovações sucessivas, a vontade expressa de ambas as partes. Em face da crescente mobilidade nacional e internacional dos artistas e da diversidade dos projectos, importa favorecer, deste modo, a celebração de contratos, como alternativa preferencial à actual prática de tratar trabalho dependente como trabalho autónomo na base do "recibo verde". Entretanto, nos contratos por tempo indeterminado, é introduzida (havendo acordo expresso de ambas as partes) a modalidade do exercício intermitente. Neste caso, o artista mantém o vínculo, tendo direito a uma remuneração de, pelo menos, 50% ou 30%, consoante possa ou não assumir outros compromissos profissionais nos períodos de inactividade. É ainda contemplada a possibilidade de reconversão profissional, em moldes mais favoráveis do que os previstos no regime geral.
Se se constituir um grupo de artistas ad hoc para realizar um espectáculo, como se estabelece o vínculo contratual com o empregador? Pode-se recorrer à figura do contrato com uma pluralidade de artistas. Ou seja: estes não têm de constituir previamente uma sociedade ou uma cooperativa, nem têm que criar no seio do grupo uma relação de subcontratação. Basta que um dos elementos, designado como chefe de grupo, acorde com o empregador os termos do contrato que a todos ficará a vincular individualmente, em pé de igualdade, na relação de trabalho com o mesmo empregador.
Que mudou quanto ao horário de trabalho, regime de férias, folgas semanais, trabalho em dias feriados e nocturno? A nova lei acaba com a situação de indefinição de direitos e deveres que existia nesta matéria, já que as normas do regime geral do Código de Trabalho eram manifestamente desajustadas à actividade dos artistas de espectáculos.
Será que os profissionais ditos técnicos e técnico-artísticos ficaram esquecidos? De modo algum. Por um lado, regem-se pelas mesmas normas dos artistas no que se refere a horário de trabalho e matérias afins. Por outro lado, e dado que, frequentemente, o seu vínculo é a uma estrutura de produção permanente ou estável, e não a um elenco ou a uma produção específicas (não estando, portanto, sujeitos aos mesmos imperativos de mobilidade dos artistas), continuam a reger-se pelo regime geral do Código de Trabalho. Nos casos, porém, em que a vertente técnico-artística prevalecer, poderão ser considerados no universo de profissionais abrangido pelo diploma.
Ficarão os titulares de direitos conexos prejudicados pela alteração agora introduzida relativamente à gestão desses direitos? Pelo contrário. A protecção legal sai reforçada, não só porque se devolve ao cidadão o direito inalienável e constitucionalmente garantido de defesa e representação legal dos direitos de que for titular, mas também porque, ao fazê-lo, se reconhece do mesmo passo a grande diversidade de vínculos, prestações laborais e direitos autorais no campo das artes do espectáculo - diversidade que aconselha, para melhor defesa dos artistas, a liberdade de regulação individual ou colectiva, consoante as situações concretas em presença. A gestão colectiva obrigatória, para além de ser até agora uma "originalidade" portuguesa, sem paralelo na Europa, era contraditória e até conflitual com essa grande diversidade de situações (por exemplo, situações de serviço público, não lucrativo, e situações comerciais), podendo reverter em prejuízo da actividade artística.
Finalmente, será que se omitiu o que, para muitos, era o mais importante - a segurança social? Não. Sem um regime laboral claramente definido para a actividade artística, não era possível contemplar adequadamente as legítimas aspirações dos artistas em matéria de segurança social. De qualquer modo, o quadro laboral agora aprovado, ao incentivar efectivamente a celebração de contratos, contribui, desde logo, para o reforço da protecção social dos artistas, dado o seu reflexo no regime de descontos para a Segurança Social.

Mário Vieira de Carvalho
Secretário de Estado da Cultura

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