sábado, dezembro 08, 2007

Duas ideias sobre Intermitencia,


Duas ideias sobre Intermitencia,

O Tiago Ivo Cruz desafiou-me a comentar o recente artigo do Secretário de Estado da Cultura, Mário Vieira de Carvalho e que considerasse o que ele aqui e o Pedro Picoito já escreveram sobre o tema.

Bom, em primeiro lugar queria manifestar a minha surpresa pela não existência deste assunto na blogosfera. Seria esperar, uma vez que tantos e tão ilustres intelectuais, de esquerda e de direita, pudessem ter reparado no que está acontecer com as gentes do Espectáculo. Não acontece e é estranho.

Depois parece-me que o mais importante no processo em curso é que se criem os hábitos de trabalho e de construção de quotidianos de política que permitam observar e melhorar a legislação de determinado sector. Explico.

Na democracia portuguesa não existem hábitos de trabalho político interpartidário e entre a sociedade política e a sociedade civil. A regra é que quem está no poder, no governo, usa e abusa do direito de ler no voto legislativo uma carta de alforria que tudo permite. Neste moldes o diálogo é de surdos e o que acontece é que é aprovada a proposta do governo com toda a oposição contra. A oposição, por seu vez, geralmente, pede o Mundo e a Lua nas suas reivindicações, sabendo de antemão que nada do que pede pode ser negociado. Daqui saem duas linhas estratégicas: um acordo mínimo para que a oposição possa cantar vitória; ou a rejeição total seguida de contestação sectorial na rua e nos media, como ou sem greves; e acusações de autismo e de totalitarismo por parte do governo.

É sempre assim, seja em que área da governação for. E foi assim na discussão do dossier intermitentes. Como aqui escrevi, nunca houve por parte da Plataforma uma verdadeira vontade de trabalhar política. Pior, em muitos casos, especialmente após a entrada do PCP no debate, houve uma manipulação estratégica no sentido de boicotar qualquer tipo de entendimento entre o que o Governo e o Grupo Parlamentar do PS (GPPS) estavam a trabalhar e a Plataforma. Isto apesar das dezenas de audições que o GPPS patrocinou, com todos os envolvidos no debate. Estive inclusive em reuniões onde a Plataforma praticamente concordava com a proposta do PS, inclusive as alterações sugeridas foram aproveitadas, e de seguida ocupavam-se as escadas da Assembleia da República a denunciar o autismo governamental. Isto não é trabalhar política no sentido em que se procura melhorar as condições de vida de determinado sector profissional (como é o caso). Isto é brincar à política partidária.

Agora convém manter o governo na defensiva, com sorte abrir outra linha de contestação e se correr bem ainda se fecham os teatros, cinemas, ateliers e afins por um fim-de-semana, com uma greve geral do sector. É esse o grande objectivo? O que se ganha com isso? Só soundbite e tempo espaço de antena. Melhorias para o sector? Nada.

E ninguém parece entender isto.

Não quero aqui requentar o que estava na altura em discussão. Já o fiz aqui. Nem procuro defender que a lei está perfeita ou que é incólume. Longe disso. As leis à nascença não se querem sem falhas, pelo contrário; a ideia é que o aperfeiçoamento seja desenvolvido na prática, com o confronto com o Real, e não aquando da sua construção teórica.

Isto quer dizer que a Plataforma, e quem contesta esta lei, em vez de estar preocupada em desenvolver a próxima acção directa, devia estar interessada em seguir a aplicação da lei, em preparar gabinetes de acompanhamento jurídico para que os profissionais do sector possam ter o apoio necessário para o entendimento do novo enquadramento legal. Mas não chega. Devem estar a preparar grupos que recolham casos concretos de boa e má aplicação da lei, para que a imperativa legal seja construída com a colaboração de quem recebe o impacto da nova estrutura legislativa; e patrocinar sessões de esclarecimento, de preferência articuladas com o governo, para que a informação chegue cristalina a todos quanto dela necessitam. Deve também fomentar contactos com o Ministério do Trabalho e da Segurança Social para saber o que está a ser feito e como. Eu, por exemplo, já contactei a Secretaria de Estado da Segurança Social, que se disponibilizou para o que for necessário.

Se hoje a lei não é perfeita, pode sê-lo em dois anos, em cinco. Esta espera, este trabalho de acompanhamento, de consistência, tem de ser feito. E tem de ser feito pela sociedade civil (a aí a Plataforma poderia dar um óptimo contributo). Agora, isto exige que se trabalhe política; que se acredite no sistema, que é possível melhorar as condições de vida deste sector. Da parte do governo julgo que existe todo o interesse nisso. E na oposição? Ai julgo que não.

Para terminar, duas palavras sobre o texto do Mário Vieira de Carvalho.

Concordo com a avaliação formal do Tiago. O texto é demasiado pedagógico para ter um interesse intelectual superior. Penso é que esse era o objectivo, apresentar, nesta fase, o que está em cima da mesa. Conceitos básicos. Apenas. Vejamos se o futuro nos reserva melhores análises.

Parece-me que os comentários do Pedro Picoito pecam por tardios, uma vez que muita da argumentação que utiliza já foi sobejamente debatida (ver, outra vez, este texto). Espero os seus updates.

Por fim, Tiago, não me parece que esta seja uma lei para os Intermitentes, o que acho bem. Em primeiro lugar, do ponto de vista teórico, a discussão sobre o que é a Intermitência deve de ser feita fora das instâncias parlamentares. Nunca deveria estar no traçado legal. Deve ser promovida na arena comum, na intersecção entre a sociedade civil, política e académica. E deixo-te o desafio para organizarmos algo nesse sentido. Em segundo lugar, do ponto de vista prático, sendo esta uma bandeira bem estanque, e tão polémica, não fazia sentido colocá-la na letra da lei. Só iria confundir e provocar distracção. A ideia era resolver um problema laboral, não discutir Teoria da Cultura.

Termino lembrando que este é apenas o primeiro passo. A perfeição está no decimo. Saibamos lá chegar.

[Post também publicado nos Les Cannards Libertaires]

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