quarta-feira, setembro 12, 2007

André Freire


Muita gente me referiu o último artigo do André Freire no Público. É, admito, um assunto que me interessa sobremaneira, e acerca do qual gostaria de acrescentar alguma reflexão (que deixo para tempo oportuno). Aqui fica o contributo do politólogo:

[texto via PS Lumiar]



Coligações e democracia: os dilemas da esquerda
Talvez por ter apanhado muita gente de férias, a coligação PS-BE para a Câmara de Lisboa foi tratada de forma superficial e/ou panfletária. O facto poderá, porém, vir a ter implicações relevantes para a maturação da democracia portuguesa. Vejamos porquê.

Pelo PS, António Costa venceu as eleições com 29,5 por cento. Por isso, pretendeu uma coligação com todas as forças de esquerda. Porém, apenas o vereador Sá Fernandes, pelo BE, respondeu positivamente.
O primeiro dado singular é que se trata de uma coligação minoritária. Ou seja, a soma dos vereadores (6+1) é inferior à maioria absoluta (9).
É curiosa também porque sabemos que, devido ao entendimento PS-PSD para a revisão das leis eleitorais autárquicas, não serão necessárias quaisquer coligações nas autárquicas de 2009.

Para fazer luz da decisão de Costa temos não só o reconhecimento que fez do carácter plural da esquerda (em Lisboa), mas também a situação difícil que vive a câmara e a existência de uma maioria de direita na assembleia municipal.
Mas podemos também olhar para esta coligação como um ensaio que, se correr bem, poderá eventualmente ser replicado ao nível do país.
Se o PS conseguir apenas uma maioria relativa nas próximas legislativas, uma das soluções possíveis é uma coligação de esquerda.
Além disso, Costa posiciona-se como putativo líder de uma "esquerda plural", para o caso de Sócrates não querer governar uma tal coligação e os resultados eleitorais, bem como o próprio partido, levarem a que se afaste o cenário de uma coligação com a direita.

Para o BE, a coligação apresenta pelo menos duas vantagens: compromete o partido apenas ao nível autárquico, deixando-lhe o caminho livre para continuar a fazer oposição ao nível nacional e, assim, apresentar com credibilidade o seu programa alternativo em 2009; como a lista é encabeçada por um independente, deixa margem acrescida ao partido para se demarcar se, por hipótese, as coisas correrem mal.

Nas democracias representativas, a luta pelo controlo do Governo está no cerne da luta política.
Por isso, o politólogo Peter Mair propôs uma tipologia que classifica os sistemas de partidos de acordo com o grau de inclusão de partidos no Governo e o grau de inovação nas fórmulas governativas.
Na Europa, Portugal apresenta um dos sistemas mais fechados/menos inclusivos e menos inovadores. E porquê?
Porque, de 1987 à actualidade, só houve uma coligação e, ao longo de toda a história democrática, os partidos à esquerda do PS nunca entraram no Governo.
Por isso, Portugal tem um sistema partidário enviesado para a direita: quando não governou sozinho, o PS governou com o CDS ou com o PSD.

Na Europa, as coligações são a regra dominante numa maioria esmagadora de países.
E tais coligações, sobretudo quando alinhadas à esquerda, têm incluído vários partidos da família do BE.
Os politólogos dividem-se na classificação desta família, "Esquerda Libertária" ou "Socialistas de Esquerda", que inclui partidos tais como o Sosialislitik Venstreparti (Noruega), o Socialislitik Folkeparti e o Enheedlisten - De Roed Gronne (Dinamarca), o Politieke Partij Radikalen e o Groen Links (Holanda), o Partei des Demokratischen Sozialismus (Alemanha) e o Vänsterpartiet (Suécia), etc.
Trata-se de partidos que, tal como o BE, fizeram o seu aggiornamento a partir de formações de extrema-esquerda de tipo trotskista, marxista-leninista ou maoísta.
Todos abraçam as causas da "nova esquerda": mais democracia participativa, direitos das minorias (étnicas, sexuais, etc.), ambientalismo, etc.
Além disso, muitos fazem parte do mesmo grupo parlamentar do BE no Parlamento Europeu.
Aquilo que separa a maioria destes partidos do BE é o facto de terem participado em inúmeras coligações (ou acordos de incidência parlamentar) nacionais com os sociais-democratas.
Mas não é preciso irmos à Escandinávia ou à Holanda para encontrarmos este tipo de fórmulas governativas.
Em Espanha, temos um governo minoritário do PSOE apoiado pela Izquierda Unida (PCE e forças da "nova esquerda") e pela Esquerda Republicana da Catalunha.
Em Itália, temos uma coligação de esquerda que inclui diversas formações de extrema-esquerda, nomeadamente comunistas.
A "Esquerda plural", em França, ia do PSF à extrema-esquerda.
Estas coligações são a norma na Europa, não aquilo a que chamei o enviesamento para a direita do sistema partidário português.

É por isso que reacções à coligação PS-BE como a que foi protagonizada por Pulido Valente (Público, 12.08.07) revelam desconhecimento do funcionamento efectivo das democracias europeias e do perfil dos "Socialistas de Esquerda".
Há também o profundo desejo da direita de que o PS nunca se consiga entender com os partidos à sua esquerda e, em caso de necessidade, governe apenas com ela.
Menos compreensíveis são as declarações de certos dirigentes do BE parecendo rejeitar liminarmente uma coligação em 2009.
O grande dilema do BE será o de saber se, em caso de maioria relativa do PS, vai querer atirá-lo para os braços da direita ou se, convergindo com as práticas dos seus congéneres europeus, quererá "invadir, penetrar e contaminar o PS com o que de melhor o BE trouxe à política portuguesa" (Miguel Vale de Almeida).

A essência da democracia é o compromisso e uma coligação de esquerda não implica necessariamente uma diluição da identidade dos pequenos, como mostram as inúmeras experiências europeias.
E a incorporação dos vários segmentos do eleitorado no Governo fará muito mais pela aproximação entre eleitores e eleitos do que quaisquer reformas institucionais.
O BE deve é ter presente que se rejeitar a priori tal fórmula estará a dar força aos apelos à maioria absoluta e a limitar a sua capacidade de captar eleitores do PS descontentes (mas apegados à ideia de estabilidade política).
Mais, estimula e legitima as tentações maioritárias em sede de reforma eleitoral.

André Freire – “Público” (10.09.2007)

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