O Quadro
Guernica, 1937.
A ExposiçãoAbre a 25 de Maio de 1937 em Paris. Demorou 7 anos a preparar, tendo por lema a exaltação da Técnica. Dois pavilhões monumentais desafiavam-se, num face a face mudo de palavras, pleno de ódios, o da URSS e o da Germânia. Respirando modernidade, não passavam despercebidos o pavilhão finlandês, de Alvaar Alto, em madeira, pela sua arquitectura, e o pavilhão espanhol, lhano e discreto albergue do quadro
Guernica.
O AcontecimentoO bombardeamento de Guernica, em 1937, numa Segunda feira, 26 de Abril, dia de mercado, por aviões alemães, destruíu 70% da aldeia basca e dizimou 1/3 da população. Só a 24 de Abril de 1999, o Parlamento alemão reconheceria a autoria do massacre como tendo sido obra das forças alemãs nazis (a Legião Condor).
O PintorPablo Picasso, de origem espanhola, exilado em Paris. Pai do cubismo. Em 1937 atravessava uma fase conturbada, a nível pessoal e de trabalho, sentindo faltar-lhe a inspiração. Pinta, então,
Guernica, que marcará o princípio de uma nova fase.
O Pavilhão Espanhol e os Compagnons ArtistasNa entrada do pavilhão espanhol, um mural fotográfico de soldados republicanos dava o tom político de um governo que lutava por uma Espanha livre.
Paul Éluard escreveu um poema para acompanhar o quadro
Guernica,
Juan Miró pintou um quadro representando armas em riste,
Alexander Calder apresentou, sob a forma de “mobile”, uma fonte pintada de vermelho, em alusão à República de Espanha. Os documentários de
Luis Buñuel -
Madrid 36 – e de
Joris Ivens e
Ernest Hemingway –
Tierra de España – marcavam a actualidade. O clima artístico de Féerie, francesa, de Paris, da Esquerda internacional, envolvia o clima de Festa brava ibérica, dorida, sangrenta, de verdade e morte.
O Mundo Político e a ArteEm França, o
Front Populaire, liderado por
Léon Blum, chegou ao poder nas eleições legislativas de Junho de 1936, três meses após a vitória da
Frente Popular em Espanha, e na sequência de uma Greve Geral francesa (Maio/Junho), mantendo-se durante um ano. Uma das suas naturais divisas seria o apoio à causa republicana espanhola. O clima de euforia está sintetizado na frase de
Marceau Pivert (professor e sindicalista) "
Tout est possible”. Ironicamente, o Front viria a auto-dissolver-se no Outono de 1938, na sequência de divergências internas sobre a Guerra Civil Espanhola. O provérbio francês "
Faire des châteaux en Espagne" parece cumprir-se como uma profecia.
Na Alemanha, em 1937, os Nazis expurgaram os Museus de quadros que consideraram "degenerados"; 650 obras foram especialmente seleccionadas para uma exposição "pedagógica" sobre “Arte Degenerada”, de entre as quais trabalhos de Wassily Kandinsky e de Marc Chagall. Neste mesmo ano, a já consagrada pintura de Kandinsky é apresentada no Jeu de Paume, na exposição “Origines et Developpement de l´Art Internationale Indépendant”. De origem russa, este criador repartiu a sua longa e plural actividade por Munich até 1914, pela URSS até 1921, por Weimar, no movimento Bauhaus, até 1933 e, posteriormente, por França.
A Segunda Grande Guerra
Começaria dois anos depois de Guernica e depois da derrota dos Republicanos, pelo Generalíssimo Franco, de seu nome Francisco, da Galiza. O quadro é exilado para os E.U.A., por ordem do artista, “até que Espanha seja uma democracia”, o que viria a acontecer na década de 80, ironicamente sob uma Constituição democrática mas não republicana. A dor, contida no quadro e nas terras de Espanha, espalhara-se, de 1939 até 1945, pela Europa fratricida, rasgada em duas. E foram os nossos irmãos do Novo Mundo que vieram apoiar a Europa democrática: soldados americanos e, especificamente na Holanda, soldados canadianos, desembarcaram ao longo da costa marítima europeia e ajudaram o Velho Continente a conquistar a paz.
O quadro das utopias
Todo o contexto social e político que antecedeu a obra – o feio desabrochar do nazismo e dos fascismos espanhol, italiano e português, por um lado, e as breves concretizações de utopias em Espanha e em França - e que lhe sucedeu, por longos e negros anos – a invasão da China pelo Japão (em Julho de 1937), a II Grande Guerra, a rápida ocupação da Austria, da Checoslováquia e de outros países até atingir a França, a visibilidade e as consequências do Holocausto, as ditaduras franquista e salazarista - contribuiu, por razões opostas mas por um único princípio, para que Guernica se tornasse no ícone de liberdade e de democracia, numa acepção amplamente partilhada, de anti-fascismo, de resistência, de denúncia das injustiças das Guerras que matam, ferem e exilam pessoas e povos, destroem aldeias e obras artísticas, e das efémeras utopias que feericamente proclamam “Tout est possible”.
Os elementos do quadro apontam para um imaginário complexo, onde estão presentes a força masculina e impetuosa do touro e a resistência feminina, telúrica e persistente, a luz e as trevas, a hispanidade exótica, quixotesca, mítica e romântica, o sofrimento e a força revolucionária de libertação de um povo, a Festa (a festa brava; a Festa política e social). O touro pode ser a própria Espanha que, olhada no mapa, com os seus relevos orográficos, se assemelha a "una vieja piel de toro" se não mesmo o Touro-Europa ferida/o pelo Cavalo da Guerra. Figurativo, o mural permite leituras múltiplas e controversas de cada uma e do conjunto das imagens, retorcidas pela perspectiva cubista. A hispanidade de 36-39, viria a cumprir, segundo alguns, a revolução, pela mão de ferro do galego Castro e pelo punho cerrado do argentino Che, reforçando o poder simbólico de Guernica, em Festa e em sangue. À Festa seria acrescentado o mitema da sensualidade da música cubana e reforçado o mitema do romantismo que se bate contra moinhos de vento (em África, na América do Sul) na figura de um Che, belo e jovem, de boina basca.
Guernica é universalmente legível, intrinsecamente e extrinsecamente, a partir de um ideário de liberdade (comungado ou contestado) e actualizada por todas e por cada uma das revoluções ocorridas ao longo de 70 anos. Por isso, se ao princípio foi apenas o Quadro de Uma Exposição, de uma luta política, transformar-se-ia no Quadro de um Século que se quis livre, o século XX, e que experimentou, primeiro pela palavra, depois concretamente, na terra e na carne, os mais diversos modelos de organização social e política, em várias partes do Mundo. Guernica palavra apresenta uma relativa homofonia com a palavra Guerra, dita em várias línguas românicas, cristalizando-as, lado a lado, no inconsciente colectivo. As Guerras continuam e Guernica mantém-se símbolo vivo. Guernica aldeia simbolizou, durante os longos anos da ditadura fascista espanhola, a guerrilha de libertação (basca e todas as outras) contra os totalitarismos. A guerrilha basca deixou de ter sentido. A Experiência social continua. “Tout est possible”?
A nenhum outro quadro, senão a "Guernica", teria sido possível representar, por condensação, como nos sonhos (segundo Freud) o século XX.
"A" Guernica, como familiarmente é designado, reifica o ideário de libertação e justiça do século XX e as atrocidades cometidas contra esse ideário ou em nome desse ideário.
Succession, Wassily Kandinsky, 1935 ...