segunda-feira, março 31, 2008

A Palavra e a Carne (3ª parte)


The Great Canyon

No romance de Grossmann, o objecto de Amor masculino aparece dolorosamente clivado, entre a Palavra, no diálogo de Yair com Miriam, e a Carne, consubstanciada no casamento com Maia.

É esta dor da separação entre a Palavra e a Carne que gera a escrita e a personagem, masculinas, de Yair-escrevente. Escrevendo-se, Yair não ultrapassa a separação entre a Palavra e a Carne mas ultrapassa a dor. Trilha dois caminhos paralelos, o da Carne, através do casamento e o da Palavra, através do adultério imaginado e feito palavra. A Carne masculina é forte, resistente, não cede à Natureza agressiva, não deixa ver o choro interior; a Palavra masculina mostra-se frágil, hesitante, capaz de suplicar, de chorar. A dor inicial resolve-se, pela escrita, ao longo das cartas. O abismo não é resolvido, as duas margens do abismo – a Palavra e a Carne - são apenas, masculinamente, alinhavadas uma à outra.

Encontramos em Chodorow uma possível interpretação, feminista e psicanalítica, da existência deste abismo primordial e pré-edipiano e para o modo como foi cultural e edipianamente resolvido. Segundo a autora, as diferenças entre géneros estabelecem-se no período pré-edipiano, nos dois primeiros anos de vida, concomitantemente com o desenvolvimento. A percepção da feminilidade é feita, no período pré-edipiano, de modo contínuo na relação da rapariga com a mãe; a percepção da masculinidade é feita na ruptura com a mãe, pela diferença: o rapaz é uma não-menina, uma não-fêmea. A identidade de género e o sentido da masculinidade são elaboradas na ruptura (para) com a mãe, num primeiro momento, o pré-edipiano.

Só num segundo momento do desenvolvimento sócio-psicológico - porque os homens são os detentores da cultura e do poder hegemónicos - as experiências pré-edipanas são reelaboradas discursivamente, pelo Verbo, e a mulher passa a ser um não-homem. Trata-se do momento edipiano.

A hegemonia e o poder masculinos resultariam, por conseguinte, para Chodorow, da institucionalização do inconsciente masculino, das suas defesas contra as experiências reprimidas (mas, por isso, extremamente actuantes) vivenciadas na fase pré-edipiana. O individualismo seria, assim, uma consequência da visão masculina edipiana sobre a separação pré-edipiana, visão da qual nasce, no homem, a necessidade de distância para com o outro e de autonomia face ao outro. Pelo contrário, e por terem tido um desenvolvimento precoce (pré-edipiano) de continuidade com a mãe, as raparigas adquirem um maior potencial psicológico - por comparação com que os rapazes - de segurança e liberdade. A necessidade de distância feminina para com o outro é mais ténue, a necessidade de autonomia menos desenvolvida. As raparigas sabem-se desde sempre mulheres, na sua Carne, ainda que o Verbo, mais tarde, lhes tenha contado a história de serem não-homens…

Voltando ao amor longamente (d)escrito em Grossmann, esta tese veste perfeitamente não apenas a nudez a solo de Yair, mas também o que nele o impede de usar a Palavra para regressar à Mãe. Yair não tem, dentro de si, essa palavra porque a separação Mãe-Filho é precoce, aconteceu-se na fase pré-edipiana, antes da institucionalização do Verbo. Por isso fica nu nos quintais das Casas das Mulheres que poderia amar plenamente. Fica nu no quintal da sua própria Casa porque não usa – porque a não tem - a Palavra para com Maia. Põe-se nu no quintal da Casa de Miriam porque não ousa usar a Carne. Fica sempre nu mas resiste à chuva, às dentadas da Natureza no seu Corpo. A imagem do cowboy solitário, a cavalo no Grande Canyon não será apenas hollywoodesca mas para-universal (na civilização ocidental ou judaico-cristã). Nu, individualista, autónomo, o homem cowboy fica um eterno menino-homem em luta contra a Natureza. Luta após luta, faz breves regressos a Casa ou às Casas. É marinheiro que vem a Terra, é cowboy que abre as portas do saloon. Uma eterna luta para continuar a ser não-mulher impede-o de chorar, impede-lhe a proximidade do Outro, dificulta-lhe a nudez a dois por um tempo longo, dificulta-lhe a nudez total, da Palavra e do Corpo.

Terá sido o homem a inventou o Amor-Paixão? Provavelmente… Colocou a Mulher dentro das ameias para dar a si próprio a tarefa de matar um dragão antes de chegar a ela. Quando cumpre a conquista do Forte, o Amor-Paixão transforma-se em Amor Romântico. Quando não cumpre a conquista material do Forte por não querer, por não poder[1], procura conquistá-lo pela Palavra, como o fizeram os Troubadours, Trobadors… fortalecendo um Amor-Paixão infindo, deixando-nos um espólio de cantos e trovas e eternizando, para a Mulher, a espera de Ulisses. As palavras trovadorescas permitem ao trovador-aristocrata o desvio não disruptor da ordem social. Talvez seja esse o papel, hoje democratizado, dos chats amorosos na net … Trilham-se – com a Chanson d´Amour - dois caminhos paralelos, o da Carne, através do casamento e o da Palavra, através do adultério imaginado e feito palavra trovada.

Questões com perguntas …

As respostas às perguntas, perante o que foi lido, até agora, dizem-nos das diferenças entre o Homem e a Mulher perante os caminhos do Amor. O homem parece o ser frágil, com medo da união total com a mulher, a olhar os vários abismos que se abrem perante si, seja a fossa com dragões para vencer, seja a divisão entre a Carne e a Palavra. Mais frágil, à partida, do que a mulher, o homem tem de lutar contra a Natureza – dragões, “Chuva” (Grossman) – para mostrar ser um homem, o homem que lhe disseram que ele é, inconfundível com a não-mulher que ele sabe ter sido antes do Princípio, antes do Verbo. Para a Mulher, o caminho do Amor será um caminho de continuidade pois ela sabe ser, desde que nasceu, mulher. Sabe também que, ao crescer, lhe foram dizendo que, afinal ela é um não-homem, i.e, freudianamente, um ser com uma simbólica inveja do pénis. Ambos, homem e mulher, têm, de si próprios, duas percepções. E cada um terá, do outro sexo, duas percepções…

Será possível livrarmo-nos desta quantidade enorme de percepções cruzadas? Tentemos, a partir do grito: “Chasser le Naturel, il revient au galop”! Se assim fosse, o encontro amoroso heterossexual dar-se-ia em estádios de desenvolvimento sócio-psicológico pré-edipiano. Ou seja, entre uma mulher e um ser não-mulher, o que, provavelmente, muito facilitaria a relação de Amor sob o paradigma do feminino, com um “maior potencial psicológico de segurança e liberdade”… que permitiria diminuir abismos masculinos, entre a Palavra e a Carne, entre estar e partir.

O caminho poderia, então, ser este: apoiar as fragilidades masculinas de modo a deixar emergir, no macho, aquilo que ele tem de não-mulher (o lado feminino, mesmo que do avesso ou o lado de lá do feminino). E como?

Veblen distingue entre o instinto artesanal, do homem de trabalho, a medir-se com uma Natureza que procura dominar obedecendo-lhe, através do conhecimento e da utilização inteligentes das relações de causa / efeito e o instinto predador, do homem de proa, agressivo, ciumento, invejoso, que arranca aos outros, com violência, aquilo que deseja para si. A partir deste instinto artesanal, não dominador, do lado do feminino, do homem e da mulher, poderíamos construir o Casal Novo? … que dispense o exercício do instinto predador, que “ama e deixa o seu amor livre para amar” (Mata)?


(continua … porque creio que acabei de começar …)

Vera Santana

CHODOROW, Nancy (1997) - Gender, Relations and Difference in Psychoanalityc Perspective In Meyers, Diana Tietjens (ed.) (1997) - Feminist Social Thought: a reader, New York and London, Routledge.

MATA, João – Sociólogo e Somaterapeuta; Lisboa, 2007/2008


27 de Março de 2008

[1] Porque a Dama é casada ou porque pertence a uma categoria social superior ou a outro grupo social …

7 comentários:

Mafarrico disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Vera Santana disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Mafarrico disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Vera Santana disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Mafarrico disse...

Lamento a minha eventual azelhice que terá feito desaparecer os comentários que aqui havia deixado, alguns dias atrás. Naturalmente, não foi um acto deliberado, nem tal faria qualquer sentido. Ainda assim, e na impossibilidade de reescrever tudo, aqui deixo o fundamental desses comentários - justamente o poema de Luís Pignatelli - com as minhas desculpas aos autores do blog e aos leitores:

Não é fácil o amor melhor seria
Arrancar um braço fazê-lo voar
Dar a volta ao mundo abraçar
Todo o mundo fazer da alegria

O pão nosso de cada dia não copiar
Os gestos do amor matar a melancolia
Que há no amor querer a vontade fria
Ser cego surdo mudo não sujeitar

O amor ao destino de cada um não ter
Destino nenhum ser a própria imagem
Do amor pôr o coração ao largo não sofrer

Os males do amor não vacilar ter a coragem
De enfrentar a razão de ser da própria dor
Porque o amor é triste não é fácil o amor

Vera Santana disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Mafarrico disse...

Claro que me deixo de mafarricadas. Esta será, aliás, a derradeira mensagem que aqui deixo, e destina-se apenas a reafirmar tudo o que disse na mensagem anterior.
Boas prosas e até sempre.

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