The Great Canyon
No romance de Grossmann, o objecto de Amor masculino aparece dolorosamente clivado, entre a Palavra, no diálogo de Yair com Miriam, e a Carne, consubstanciada no casamento com Maia.
É esta dor da separação entre a Palavra e a Carne que gera a escrita e a personagem, masculinas, de Yair-escrevente. Escrevendo-se, Yair não ultrapassa a separação entre a Palavra e a Carne mas ultrapassa a dor. Trilha dois caminhos paralelos, o da Carne, através do casamento e o da Palavra, através do adultério imaginado e feito palavra. A Carne masculina é forte, resistente, não cede à Natureza agressiva, não deixa ver o choro interior; a Palavra masculina mostra-se frágil, hesitante, capaz de suplicar, de chorar. A dor inicial resolve-se, pela escrita, ao longo das cartas. O abismo não é resolvido, as duas margens do abismo – a Palavra e a Carne - são apenas, masculinamente, alinhavadas uma à outra.
Encontramos em Chodorow uma possível interpretação, feminista e psicanalítica, da existência deste abismo primordial e pré-edipiano e para o modo como foi cultural e edipianamente resolvido. Segundo a autora, as diferenças entre géneros estabelecem-se no período pré-edipiano, nos dois primeiros anos de vida, concomitantemente com o desenvolvimento. A percepção da feminilidade é feita, no período pré-edipiano, de modo contínuo na relação da rapariga com a mãe; a percepção da masculinidade é feita na ruptura com a mãe, pela diferença: o rapaz é uma não-menina, uma não-fêmea. A identidade de género e o sentido da masculinidade são elaboradas na ruptura (para) com a mãe, num primeiro momento, o pré-edipiano.
Só num segundo momento do desenvolvimento sócio-psicológico - porque os homens são os detentores da cultura e do poder hegemónicos - as experiências pré-edipanas são reelaboradas discursivamente, pelo Verbo, e a mulher passa a ser um não-homem. Trata-se do momento edipiano.
A hegemonia e o poder masculinos resultariam, por conseguinte, para Chodorow, da institucionalização do inconsciente masculino, das suas defesas contra as experiências reprimidas (mas, por isso, extremamente actuantes) vivenciadas na fase pré-edipiana. O individualismo seria, assim, uma consequência da visão masculina edipiana sobre a separação pré-edipiana, visão da qual nasce, no homem, a necessidade de distância para com o outro e de autonomia face ao outro. Pelo contrário, e por terem tido um desenvolvimento precoce (pré-edipiano) de continuidade com a mãe, as raparigas adquirem um maior potencial psicológico - por comparação com que os rapazes - de segurança e liberdade. A necessidade de distância feminina para com o outro é mais ténue, a necessidade de autonomia menos desenvolvida. As raparigas sabem-se desde sempre mulheres, na sua Carne, ainda que o Verbo, mais tarde, lhes tenha contado a história de serem não-homens…
Voltando ao amor longamente (d)escrito em Grossmann, esta tese veste perfeitamente não apenas a nudez a solo de Yair, mas também o que nele o impede de usar a Palavra para regressar à Mãe. Yair não tem, dentro de si, essa palavra porque a separação Mãe-Filho é precoce, aconteceu-se na fase pré-edipiana, antes da institucionalização do Verbo. Por isso fica nu nos quintais das Casas das Mulheres que poderia amar plenamente. Fica nu no quintal da sua própria Casa porque não usa – porque a não tem - a Palavra para com Maia. Põe-se nu no quintal da Casa de Miriam porque não ousa usar a Carne. Fica sempre nu mas resiste à chuva, às dentadas da Natureza no seu Corpo. A imagem do cowboy solitário, a cavalo no Grande Canyon não será apenas hollywoodesca mas para-universal (na civilização ocidental ou judaico-cristã). Nu, individualista, autónomo, o homem cowboy fica um eterno menino-homem em luta contra a Natureza. Luta após luta, faz breves regressos a Casa ou às Casas. É marinheiro que vem a Terra, é cowboy que abre as portas do saloon. Uma eterna luta para continuar a ser não-mulher impede-o de chorar, impede-lhe a proximidade do Outro, dificulta-lhe a nudez a dois por um tempo longo, dificulta-lhe a nudez total, da Palavra e do Corpo.
Terá sido o homem a inventou o Amor-Paixão? Provavelmente… Colocou a Mulher dentro das ameias para dar a si próprio a tarefa de matar um dragão antes de chegar a ela. Quando cumpre a conquista do Forte, o Amor-Paixão transforma-se em Amor Romântico. Quando não cumpre a conquista material do Forte por não querer, por não poder[1], procura conquistá-lo pela Palavra, como o fizeram os Troubadours, Trobadors… fortalecendo um Amor-Paixão infindo, deixando-nos um espólio de cantos e trovas e eternizando, para a Mulher, a espera de Ulisses. As palavras trovadorescas permitem ao trovador-aristocrata o desvio não disruptor da ordem social. Talvez seja esse o papel, hoje democratizado, dos chats amorosos na net … Trilham-se – com a Chanson d´Amour - dois caminhos paralelos, o da Carne, através do casamento e o da Palavra, através do adultério imaginado e feito palavra trovada.
Questões com perguntas …
As respostas às perguntas, perante o que foi lido, até agora, dizem-nos das diferenças entre o Homem e a Mulher perante os caminhos do Amor. O homem parece o ser frágil, com medo da união total com a mulher, a olhar os vários abismos que se abrem perante si, seja a fossa com dragões para vencer, seja a divisão entre a Carne e a Palavra. Mais frágil, à partida, do que a mulher, o homem tem de lutar contra a Natureza – dragões, “Chuva” (Grossman) – para mostrar ser um homem, o homem que lhe disseram que ele é, inconfundível com a não-mulher que ele sabe ter sido antes do Princípio, antes do Verbo. Para a Mulher, o caminho do Amor será um caminho de continuidade pois ela sabe ser, desde que nasceu, mulher. Sabe também que, ao crescer, lhe foram dizendo que, afinal ela é um não-homem, i.e, freudianamente, um ser com uma simbólica inveja do pénis. Ambos, homem e mulher, têm, de si próprios, duas percepções. E cada um terá, do outro sexo, duas percepções…
Será possível livrarmo-nos desta quantidade enorme de percepções cruzadas? Tentemos, a partir do grito: “Chasser le Naturel, il revient au galop”! Se assim fosse, o encontro amoroso heterossexual dar-se-ia em estádios de desenvolvimento sócio-psicológico pré-edipiano. Ou seja, entre uma mulher e um ser não-mulher, o que, provavelmente, muito facilitaria a relação de Amor sob o paradigma do feminino, com um “maior potencial psicológico de segurança e liberdade”… que permitiria diminuir abismos masculinos, entre a Palavra e a Carne, entre estar e partir.
O caminho poderia, então, ser este: apoiar as fragilidades masculinas de modo a deixar emergir, no macho, aquilo que ele tem de não-mulher (o lado feminino, mesmo que do avesso ou o lado de lá do feminino). E como?
Veblen distingue entre o instinto artesanal, do homem de trabalho, a medir-se com uma Natureza que procura dominar obedecendo-lhe, através do conhecimento e da utilização inteligentes das relações de causa / efeito e o instinto predador, do homem de proa, agressivo, ciumento, invejoso, que arranca aos outros, com violência, aquilo que deseja para si. A partir deste instinto artesanal, não dominador, do lado do feminino, do homem e da mulher, poderíamos construir o Casal Novo? … que dispense o exercício do instinto predador, que “ama e deixa o seu amor livre para amar” (Mata)?
(continua … porque creio que acabei de começar …)
Vera Santana
CHODOROW, Nancy (1997) - Gender, Relations and Difference in Psychoanalityc Perspective In Meyers, Diana Tietjens (ed.) (1997) - Feminist Social Thought: a reader, New York and London, Routledge.
MATA, João – Sociólogo e Somaterapeuta; Lisboa, 2007/2008
27 de Março de 2008
[1] Porque a Dama é casada ou porque pertence a uma categoria social superior ou a outro grupo social …
7 comentários:
Lamento a minha eventual azelhice que terá feito desaparecer os comentários que aqui havia deixado, alguns dias atrás. Naturalmente, não foi um acto deliberado, nem tal faria qualquer sentido. Ainda assim, e na impossibilidade de reescrever tudo, aqui deixo o fundamental desses comentários - justamente o poema de Luís Pignatelli - com as minhas desculpas aos autores do blog e aos leitores:
Não é fácil o amor melhor seria
Arrancar um braço fazê-lo voar
Dar a volta ao mundo abraçar
Todo o mundo fazer da alegria
O pão nosso de cada dia não copiar
Os gestos do amor matar a melancolia
Que há no amor querer a vontade fria
Ser cego surdo mudo não sujeitar
O amor ao destino de cada um não ter
Destino nenhum ser a própria imagem
Do amor pôr o coração ao largo não sofrer
Os males do amor não vacilar ter a coragem
De enfrentar a razão de ser da própria dor
Porque o amor é triste não é fácil o amor
Claro que me deixo de mafarricadas. Esta será, aliás, a derradeira mensagem que aqui deixo, e destina-se apenas a reafirmar tudo o que disse na mensagem anterior.
Boas prosas e até sempre.
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