O prazer da página em branco
O prazer da página em branco. Muito se fala da angústia da página em branco. E o prazer dado por uma página em branco na qual se lança uma primeira mancha negra, uma palavra, duas palavras? É um prazer de apropriação, resultante de um acto de vontade. É um prazer primeiro que condiciona os prazeres seguintes. A página vai perdendo a brancura porque eu inscrevo nela o negro da letra, o negro da vida. Para muitas culturas o branco é a Morte.
Carne Viva
Começo esta página com prazer e com a palavra prazer. E não é por acaso. Quero falar do resultado das leituras cruzadas que, ao acaso, vou fazendo. De David Grossmann li, num ápice, “Em Carne Viva”, para alguns a mais triste história de amor de sempre. É mais uma história de amor escrita no masculino, escancarando o ponto de vista do macho. Nesta história, o do macho judeu.
Há uma personagem principal ou talvez duas que enche(m) o capítulo primeiro, o mais volumoso, e também o de maior duração: Yair. Yair que escreve, Yair que se autobiografa. Nem sempre são o mesmo. Yair que escreve fá-lo a partir de um acto inaugural: escreve uma primeira carta a uma mulher, Miriam, que não conhece, apenas entreviu, e elegeu pelo sorriso, pelo modo de-estar-não-estando, em grupo, pelo auto-abraço em que se acariciava, pela maternidade – saberemos depois – que Yair viu nela, antevista no acto de disponibilidade para com os alunos. O Yair que escreve é um conquistador, um Cyrano que seduz pelas palavras, que fala em paixão, em amor carnal. Yair que inventa encontros entre ambos, junto de “jactos de água”, fugas clandestinas “de três dias”, corpos em frémito, o corpo masculino a proteger, qual concha, o sono do corpo feminino. Yair em estado de paixão absoluta que conta o tempo - “daqui a 6 horas”- que falta para que as palavras escritas por si, no papel, penetrem os olhos, o cérebro, os vários pontos do corpo de Miriam. É um Yair apaixonado, que sofre e tem prazer, que se inquieta com os atrasos das cartas de Miriam. É um Yair trovador que canta e encanta Isolda com palavras de Tristão. Sim, claro, como amor-paixão que é, acaba mal. Os obstáculos que dificultam qualquer amor-paixão (Luhmann, Giddens) não vão ser ultrapassados ou se calhar nem existiam porque eram palavras inscritas no papel, ou, por serem palavras em devir tinham um poder maior do que qualquer acto acontecido... Ao contrário deste Yair, o Yair que se autobiógrafa é um Yair inseguro, infantil, em carne viva, nu. O Yair-escrevente domina a escrita, é activo, fala a uma Mulher que quer conquistar. O Yair-biografado é um ser aparentemente dominado pela sua própria narrativa de vida, pela culpabilidade que o persegue, em criança e em adulto e que pede a compreensão Maternal de Miriam: “sê o meu pára-raios” para o seu irmão-negro, ou ele próprio nos seus actos “desviados” que para sempre o impregnaram de negritude – o roubo de dinheiro, o sexo comprado – num cantinho da sua cabeça muito freudianamente isolado e estanque, e de culpabilidade – inscrita no corpo, olhada e vista por terceiros, na rua, desde que miúdo de treze anos, saíra, às escondidas e humilhado por uma matrona, do beco do sexo comprado.
A narrativa – porque de uma narrativa se trata – sob a forma de cartas, cartas de Yair a Miriam e desta áquele, tem um desfecho subtil e inesperado, numa curta frase da última carta de Yair a Miriam quando esta – sempre em situações imaginadas por Yair – lhe pede, numa frase de quatro palavras, depois do acto de Amor Carnal “náo saias de mim”. Yair-escrevente revolta-se, quer sair dela, de Miriam Mulher, quer a sua Liberdade de Homem, cumprido que estava o acto de virilidade; não compreende o que dele quer Miriam pois se até a virilidade se encontrava em quarto minguante! Yair-autobiografo também se revolta: ao longo de 8 meses, já tinha contado a Miriam Mãe, uma desconhecida, tudo o que nunca antes ousara contar a ninguém, nem mesmo à mulher, Maia a Alegre, e Mãe de um Filho de ambos[1], a necessidade de maternagem de Yair acabara, a enorme culpabilidade de Yair já fora atirada em “jactos de água”, para Miriam-Mãe-de-Yair, já não fazia sentido, para Yair “não sair dela”; findos 8 meses de escrita, o Amor Carnal fora cumprido (em palavras…) já não fazia sentido, paradoxalmente, continuar a escrever a Miriam-Mulher. Yair-escrevente e Yair-autobiografado são, no acto de fuga para longe de Miriam, totalmente cúmplices entre si, afinal são apenas um: Yair, o Homem, um quarto minguante que se vê insignificante depois do (j)acto final. In-significante para o Acto e in-significante pela Palavra. “Já gastámos as palavras, meu Amor” diz o nosso Poeta.
E Miriam? Miriam é, em “Carne Viva”, uma personagem secundária. Disponível, abriu as mãos para receber as Palavras de Yair, palavras de Paixão e palavras de dores, dele, antigas e enterradas. Miriam é uma Mãe sem um Filho da sua carne (o filho … é do 1º casamento do marido) e uma Mãe de alunos, para os alunos. As cartas de Miriam constituem o segundo capítulo do livro e são a continuação cronológica das cartas de Yair. O Cupido das Palavras de Yair atingiram a Carne de Miriam e ela espera que Yair suba as escadas da Casa, em carne e osso. Espera por Yair, acabadas que estão as Palavras que este lhe mandara ao longo de 8 meses. Nem 9 meses foram; e a fuga imaginada por Yair nem uma semana durou, apenas três dias; Yair pode ser tão desviado que nem cumpre o tempo Social, seja o da Natureza Procriadora, seja o do Livro Sagrado!. São, nesta Narrativa, as Mulheres que cumprem os Tempos e o Sagrado? São provavelmente nesta nossa Civilização Ocidental. Acabados os 8 meses prenhes de palavras masculinas, Miriam fica vazia. Enche o corpo em carne viva com a invenção do Surgimento de Yair e com livros – palavras de outrém – que lhe vai enviando ao longe, através de um paquete, de quando em quando. Miriam, uma narrativa aberta, uma obra em aberto… até quando vai Miriam esperar por Yair? Quantos livros vai Miriam enviar, por intermédio de um portador, a Yair? Quantas palavras, escritas em livros, por outros que não ela, vai Miriam enviar a Yair? Como Amor-Paixão que é, a história acaba mal para Miriam porque não acaba… Miriam-Penélope.
“Chuva” é o terceiro e último capítulo, uma sonatina a quatro mãos, onde se misturam, em itálico, os discursos de Miriam e de Yair e onde entra, numa nova cena, uma terceira personagem de Yair: Yair-menino de nove anos, à chuva, a precisar - sem a pedir - de protecção maternal de uma Mãe (temporariamente) ausente. “Chuva” reforça o que a frase-chave, do primeiro capítulo indiciara claramente: “Mãe: não saias de mim”, e explica-a muito freudianamente.
[1] Maia é Mãe do Filho de Yair. Seria talvez incestuoso se Yair pedisse a Maia que fosse também sua Mãe. É mais fácil contar-se a uma desconhecida e permanecer Homem Grande perante a Mulher/Esposa.
(continua)
Vera Santana
1 comentário:
Passei por uma rua que se curva sobre uma igreja e, ao descer, casa com o Tejo. Do lado esquerdo, uma varanda com sardinheiras dependuradas, talvez tristes. Umas andorinhas de barro, de feira, levantavam o bico para o céu. Pedem Liberdade?
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