O Amor Paixão
Não havia obstáculos visíveis a não ser o corriqueiro facto de ambos serem casados. Yair com Maia, Miriam com Amos. Tudo se passa no final do século XX (1998) numa Israel moderna, entre gente educada e adulta. Ora, por que haveria um acontecimento tão comum de dar lugar a uma narrativa longa de 8 meses e de muitas páginas, iniciada por Yair, com palavras de Amor-Paixão, terminada por Yair, sem nunca sair do terreno das palavras? Yair não é um psicopata mas um homem comum. Um judeu comum. Poderia ter ido a um psicanalista e não haveria livro… Poderia, como diz o próprio Yair, ter acontecido um comum caso de adultério praticado e não haveria livro porque se situaria dentro das “normas do adultério” e as longas páginas não teriam nunca deixado de ser brancas, pois um homem não iria escrever cartas, em papel, a uma Amante conquistada; escreveria emails e sms a marcar os encontros e gravaria, na virtualidade do éter, palavras de amor. Muito menos iria pessoalmente deixá-las no local de trabalho dela, numa clandestinidade a rasar as paredes (“reparaste, Miriam, que não têm selo?”).
Não era essa a ideia de Yair / David Grossmann… Foi a ideia de Marguerite Duras, ao biografar um maravilhado desvio no feminino, num tempo e num espaço longínquos, coloniais e mágicos, numa Indochina húmida e quente, habitada por raças e por culturas em choque. Grossmann poderia facilmente ter seguido, em Israel, um caminho equivalente. Quais são os obstáculos que impedem este amor por palavras de se transformar em amor veramente carnal?
Não pretendo obviamente fazer crítica literária, pelo que já saltei para fora da obra, mas interrogar o Amor, o Homem, a Mulher, a Civilização. Mais adiante, proporei uma leitura feminista do Amor.
Grossman escolhe o amor-paixão e não o amor romântico ou o amor confluente (Luhmann, Giddens), por ser um protótipo do amor no Ocidente (Rougemont). É o mito de Tristão e Isolda. Os Trovadores praticaram-no, em langue d´Oc musicada, encantando as castelãs, saltando sempre as ameias por palavras … Este tipo de amor nomeado como amor impossível seduz, nos nossos dias, as massas, mesmo quando, como acontece nas telenovelas e nas revistas cor-de-rosa, as ameias cedem, o Trovador entra e conquista a Dama, acabam por se casar, e o amor passa a ser um amor-romântico, menos disruptor da ordem social. E assim acaba a história: foram felizes para sempre. Mas, porque o amor se tornou num produto consumível, o par ou não é feliz para sempre e divorcia-se – como se pode ver nas revistas cor-de-rosa – ou tem filhos e mais filhos, ou tem até irmãos (pode ter-se um irmão ou uma irmã, de repente, como teve agora a Alexandra Lencastre) e pais e avós, e novos avós.
O que terá acontecido à imensa culpabilidade judaica de Yair, depois de parar de se escrever? Foi ele capaz de guardar as cenas infantis numa gaveta de memórias e fechá-las para sempre? A culpabilidade deve ter continuado a actuar. As cenas terão, talvez, sido trancadas e seladas… Já confessadas, de jacto, tornaram a gaveta menos pesada.
Yair quer viver uma parte do Amor que não pode viver socialmente. Quer um Amor-paixão disruptor, total, que provoque Carne Viva em Miriam. Não ia fazê-lo com a sua companheira do quotidiano. Yair quer reviver uma parte da sua história de vida que não pode reviver socialmente: não vai contar a Maia que um dia fugiu, envergonhado e diminuído, do Beco do Amor. Basta-lhe a Palavra. Na nossa civilização, ao Princípio era a Palavra. Chega. Ça suffit pour apaiser l´Homme Yair. Yair é o elemento activo da narrativa, o destinador, as Cartas o objecto material que o destinador faz chegar ao destinatário, inventando ele próprio alguns obstáculos, ao rondar, em pêlo, a casa de Miriam e ser assustado pelos cães que o filam mas que, ao vê-lo despido, se afastam. A nudez, uma certa nudez, a solo, parece ser o objecto imaterial que Yair quer fazer chegar a Miriam. Consegue pôr-se nu, mostra-se e afasta-se, numa espécie de exibicionismo por palavras.
Miriam, Mulher, está mais consciente da sua Carne. Quer que a Palavra se consubstancie em Carne. Miriam é o elemento passivo da narrativa, o destinatário. O objecto que Miriam espera são as cartas mas também uma certa outra nudez, uma nudez a dois, real, palpável e que não se afaste …
Os objectos de Amor masculino e feminino não coincidem, nesta narrativa. Ou nesta nossa civilização judaico-cristã?
(continua numa 3ª parte)
Vera Santana
Não havia obstáculos visíveis a não ser o corriqueiro facto de ambos serem casados. Yair com Maia, Miriam com Amos. Tudo se passa no final do século XX (1998) numa Israel moderna, entre gente educada e adulta. Ora, por que haveria um acontecimento tão comum de dar lugar a uma narrativa longa de 8 meses e de muitas páginas, iniciada por Yair, com palavras de Amor-Paixão, terminada por Yair, sem nunca sair do terreno das palavras? Yair não é um psicopata mas um homem comum. Um judeu comum. Poderia ter ido a um psicanalista e não haveria livro… Poderia, como diz o próprio Yair, ter acontecido um comum caso de adultério praticado e não haveria livro porque se situaria dentro das “normas do adultério” e as longas páginas não teriam nunca deixado de ser brancas, pois um homem não iria escrever cartas, em papel, a uma Amante conquistada; escreveria emails e sms a marcar os encontros e gravaria, na virtualidade do éter, palavras de amor. Muito menos iria pessoalmente deixá-las no local de trabalho dela, numa clandestinidade a rasar as paredes (“reparaste, Miriam, que não têm selo?”).
Não era essa a ideia de Yair / David Grossmann… Foi a ideia de Marguerite Duras, ao biografar um maravilhado desvio no feminino, num tempo e num espaço longínquos, coloniais e mágicos, numa Indochina húmida e quente, habitada por raças e por culturas em choque. Grossmann poderia facilmente ter seguido, em Israel, um caminho equivalente. Quais são os obstáculos que impedem este amor por palavras de se transformar em amor veramente carnal?
Não pretendo obviamente fazer crítica literária, pelo que já saltei para fora da obra, mas interrogar o Amor, o Homem, a Mulher, a Civilização. Mais adiante, proporei uma leitura feminista do Amor.
Grossman escolhe o amor-paixão e não o amor romântico ou o amor confluente (Luhmann, Giddens), por ser um protótipo do amor no Ocidente (Rougemont). É o mito de Tristão e Isolda. Os Trovadores praticaram-no, em langue d´Oc musicada, encantando as castelãs, saltando sempre as ameias por palavras … Este tipo de amor nomeado como amor impossível seduz, nos nossos dias, as massas, mesmo quando, como acontece nas telenovelas e nas revistas cor-de-rosa, as ameias cedem, o Trovador entra e conquista a Dama, acabam por se casar, e o amor passa a ser um amor-romântico, menos disruptor da ordem social. E assim acaba a história: foram felizes para sempre. Mas, porque o amor se tornou num produto consumível, o par ou não é feliz para sempre e divorcia-se – como se pode ver nas revistas cor-de-rosa – ou tem filhos e mais filhos, ou tem até irmãos (pode ter-se um irmão ou uma irmã, de repente, como teve agora a Alexandra Lencastre) e pais e avós, e novos avós.
O que terá acontecido à imensa culpabilidade judaica de Yair, depois de parar de se escrever? Foi ele capaz de guardar as cenas infantis numa gaveta de memórias e fechá-las para sempre? A culpabilidade deve ter continuado a actuar. As cenas terão, talvez, sido trancadas e seladas… Já confessadas, de jacto, tornaram a gaveta menos pesada.
Yair quer viver uma parte do Amor que não pode viver socialmente. Quer um Amor-paixão disruptor, total, que provoque Carne Viva em Miriam. Não ia fazê-lo com a sua companheira do quotidiano. Yair quer reviver uma parte da sua história de vida que não pode reviver socialmente: não vai contar a Maia que um dia fugiu, envergonhado e diminuído, do Beco do Amor. Basta-lhe a Palavra. Na nossa civilização, ao Princípio era a Palavra. Chega. Ça suffit pour apaiser l´Homme Yair. Yair é o elemento activo da narrativa, o destinador, as Cartas o objecto material que o destinador faz chegar ao destinatário, inventando ele próprio alguns obstáculos, ao rondar, em pêlo, a casa de Miriam e ser assustado pelos cães que o filam mas que, ao vê-lo despido, se afastam. A nudez, uma certa nudez, a solo, parece ser o objecto imaterial que Yair quer fazer chegar a Miriam. Consegue pôr-se nu, mostra-se e afasta-se, numa espécie de exibicionismo por palavras.
Miriam, Mulher, está mais consciente da sua Carne. Quer que a Palavra se consubstancie em Carne. Miriam é o elemento passivo da narrativa, o destinatário. O objecto que Miriam espera são as cartas mas também uma certa outra nudez, uma nudez a dois, real, palpável e que não se afaste …
Os objectos de Amor masculino e feminino não coincidem, nesta narrativa. Ou nesta nossa civilização judaico-cristã?
(continua numa 3ª parte)
Vera Santana
3 comentários:
Boa pergunta.
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Na 19ª linha do 2º parágrafo, onde está: autobiógrafo leia-se autobiografo. A s máquinas não "têm sempre razão"; neste caso, a suposta auto-correcção maquinal errou. Ainda bem. Prefiro as pessoas-errantes às máquinas.
Vera
Na 19ª linha do 2º parágrafo, onde está: autobiógrafa leia-se autobiografa. A s máquinas não "têm sempre razão"; neste caso, a suposta auto-correcção maquinal errou. Ainda bem. Prefiro as pessoas-errantes às máquinas.
Vera
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