Depois da publicação das caricaturas alusivas à pessoa do Profeta, por razões provavelmente mal intencionadas, a reacção de certos muçulmanos situa-se para além do surrealismo.
Os regimes "muçulmanos" e cartas organizações "islâmicas", como a UOIF (1) em França por exemplo, vão até à exigência patética de desculpas solenes dos chefes de governo dos países onde as caricaturas foram publicadas. Em França, o acontecimento tomou proporções "eliseiescas" (2)
Esta reivindicação, insólita na memória árabe, suscita muitas interrogações. Será que esses muçulmanos ignoram o ensinamento corânico que nos incita a transcender as polémicas ? Será que não têm no seu coração o versículo "e quando eles (os crentes) são interpelados pelos ignorantes, dizem: Paz"? Será que não sabem que o Profeta sofreu os tormentos e as injúrias mais humilhantes? Que quando os politeístas da sua época o qualificaram de efabulador e impostor, ele não lhes torceu o pescoço, antes respondeu-lhes: "Deus fará justiça no dia da retribuição."
Será que esses muçulmanos ignoram que o Islão, que traduziu e estudou os filósofos mais ateístas e que argumentou face às ideologias mais perigosas, destruidoras e semeadoras de dúvidas, não deveria tremer hoje perante um desenho caricatural e de mau gosto?
Contudo, uma religião segura de si própria, convicta da sua solidez, não pode eximir-se às críticas e aos questionamentos. Então, como querem eles que as bases do Islão vacilem hoje perante uma provocação fútil?
Quanto à outra ignorância, ela é ainda mais grave. Será que esses muçulmanos ignoram que a liberdade de expressão mais total constitui um edifício comum a todos os pensamentos, construído por todas as convicções, mesmo as mais contraditórias e inassimiláveis? Cada qual tem o direito de cidadania, seja ele bonito ou feio, louco ousábio, provocador ou responsável. Será necessário recordar que é graças a essa mesma liberdade de expressão que o próprio Islão pode erguer a sua voz nos países democráticos? Que impede um muçulmano, em França ou em qualquer outro local da Europa, de propor os seus valores? Que entrava um crente que pretende publicar as suas convicções? Não é permitido a todos os cidadãos, muçulmanos inclusive, criticar qualquer projecto ou promover qualquer acção? No momento em que o Islão não tem «boa imprensa» no Ocidente, é graças a essa mesma liberdade que nós, muçulmanos, nos podemos defender plenamente.
O meu espanto é grande quando vejo que toda uma mobilização diplomática, inédita na história dos países muçulmanos, se põe em andamento para pressionar os chefes de Estado e de governo com o objectivo de conseguir as suas desculpas e a sua «mea culpa». Contudo, esses mesmos governantes e esses mesmos chefes de Estado nunca estiveram um só dia ao abrigo da sátira mais feroz e da caricatura mais cáustica.
Quando certos Estados árabes boicotam diplomatica e economicamente a Dinamarca, país calmo e pacífico, que pensar da sua docilidade face aos Estados Unidos a quem infelizmente se oferecem, de punhos atados?
Quanto ao apoio do rabinato e da Igreja de França, ele só pode suscitar os agradecimentos vivos e sinceros dos muçulmanos pela expressão dessa solidariedade. Mas gostaríamos de a ter também para os homens e as mulheres da Palestina, do Iraque, da Tchetchénia e de outros locais, privados dos seus direitos fundamentais e vítimas de atentado à sua dignidade.
O verdadeiro debate está noutro lado. Trata-se, de facto, da justaposição de dois direitos absolutos : o direito a ter convicções religiosas que sejam completamente respeitadas e que não sejam fustigadas ou estigmatizadas, e o direito a exprimir-se a qualquer momento, designadamente para comentar ou criticar projectos sociais concretos e acções políticas palpáveis.
Quanto à convicção íntima ou metafísica das pessoas, não sei se ela é do domínio da liberdade de expressão. Reflictamos !
por Soheib Bencheikh – Teólogo, antigo mufti (3) de Marselha, é director do Institut Supérieur des Sciences Islamiques (ISSI) [ Instituto Superior de Ciências Islâmicas].
(1) UOIF – Union des Organizations Islamiques de France [ União das Organizações Islâmicas deFrança ].
(2) O adjectivo "élyséiesques" do texto original é formado a partir de "Élisée" – "Palais de l’Elysée" [ Palácio do Eliseu ] – onde o governo francês está sedeado.
(3) Intérprete da Lei muçulmana.
P.S. – Agradeço ao Luis Mateus da Associação República e Laicidade a cedência, tradução e notas do texto acima publicado. Esta reflexão também foi publicada no Geosapiens.
Os regimes "muçulmanos" e cartas organizações "islâmicas", como a UOIF (1) em França por exemplo, vão até à exigência patética de desculpas solenes dos chefes de governo dos países onde as caricaturas foram publicadas. Em França, o acontecimento tomou proporções "eliseiescas" (2)
Esta reivindicação, insólita na memória árabe, suscita muitas interrogações. Será que esses muçulmanos ignoram o ensinamento corânico que nos incita a transcender as polémicas ? Será que não têm no seu coração o versículo "e quando eles (os crentes) são interpelados pelos ignorantes, dizem: Paz"? Será que não sabem que o Profeta sofreu os tormentos e as injúrias mais humilhantes? Que quando os politeístas da sua época o qualificaram de efabulador e impostor, ele não lhes torceu o pescoço, antes respondeu-lhes: "Deus fará justiça no dia da retribuição."
Será que esses muçulmanos ignoram que o Islão, que traduziu e estudou os filósofos mais ateístas e que argumentou face às ideologias mais perigosas, destruidoras e semeadoras de dúvidas, não deveria tremer hoje perante um desenho caricatural e de mau gosto?
Contudo, uma religião segura de si própria, convicta da sua solidez, não pode eximir-se às críticas e aos questionamentos. Então, como querem eles que as bases do Islão vacilem hoje perante uma provocação fútil?
Quanto à outra ignorância, ela é ainda mais grave. Será que esses muçulmanos ignoram que a liberdade de expressão mais total constitui um edifício comum a todos os pensamentos, construído por todas as convicções, mesmo as mais contraditórias e inassimiláveis? Cada qual tem o direito de cidadania, seja ele bonito ou feio, louco ousábio, provocador ou responsável. Será necessário recordar que é graças a essa mesma liberdade de expressão que o próprio Islão pode erguer a sua voz nos países democráticos? Que impede um muçulmano, em França ou em qualquer outro local da Europa, de propor os seus valores? Que entrava um crente que pretende publicar as suas convicções? Não é permitido a todos os cidadãos, muçulmanos inclusive, criticar qualquer projecto ou promover qualquer acção? No momento em que o Islão não tem «boa imprensa» no Ocidente, é graças a essa mesma liberdade que nós, muçulmanos, nos podemos defender plenamente.
O meu espanto é grande quando vejo que toda uma mobilização diplomática, inédita na história dos países muçulmanos, se põe em andamento para pressionar os chefes de Estado e de governo com o objectivo de conseguir as suas desculpas e a sua «mea culpa». Contudo, esses mesmos governantes e esses mesmos chefes de Estado nunca estiveram um só dia ao abrigo da sátira mais feroz e da caricatura mais cáustica.
Quando certos Estados árabes boicotam diplomatica e economicamente a Dinamarca, país calmo e pacífico, que pensar da sua docilidade face aos Estados Unidos a quem infelizmente se oferecem, de punhos atados?
Quanto ao apoio do rabinato e da Igreja de França, ele só pode suscitar os agradecimentos vivos e sinceros dos muçulmanos pela expressão dessa solidariedade. Mas gostaríamos de a ter também para os homens e as mulheres da Palestina, do Iraque, da Tchetchénia e de outros locais, privados dos seus direitos fundamentais e vítimas de atentado à sua dignidade.
O verdadeiro debate está noutro lado. Trata-se, de facto, da justaposição de dois direitos absolutos : o direito a ter convicções religiosas que sejam completamente respeitadas e que não sejam fustigadas ou estigmatizadas, e o direito a exprimir-se a qualquer momento, designadamente para comentar ou criticar projectos sociais concretos e acções políticas palpáveis.
Quanto à convicção íntima ou metafísica das pessoas, não sei se ela é do domínio da liberdade de expressão. Reflictamos !
por Soheib Bencheikh – Teólogo, antigo mufti (3) de Marselha, é director do Institut Supérieur des Sciences Islamiques (ISSI) [ Instituto Superior de Ciências Islâmicas].
(1) UOIF – Union des Organizations Islamiques de France [ União das Organizações Islâmicas deFrança ].
(2) O adjectivo "élyséiesques" do texto original é formado a partir de "Élisée" – "Palais de l’Elysée" [ Palácio do Eliseu ] – onde o governo francês está sedeado.
(3) Intérprete da Lei muçulmana.
P.S. – Agradeço ao Luis Mateus da Associação República e Laicidade a cedência, tradução e notas do texto acima publicado. Esta reflexão também foi publicada no Geosapiens.
Sem comentários:
Enviar um comentário