Lycée Français Charles Lepierre à Lisbonne
Neste local, construíram-se, a partir de meados do século passado, alguns fundamentos para um novo Portugal e para uma futura Europa. A tarefa iniciou-se nas barbas de Salazar que fechava a trémula pálpebra do olho esquerdo quando alguém mencionava o liceu francês (ou a Europa, "A Outra", A Estrangeira, Amada/Temida, no inconsciente colectivo peninsular) e prolongou-se por gerações, num tempo longo, como deve ser qualquer "slow-education". Fomos ensinados/as por um punhado de bons professores, tais como Rui Grácio (honrosamente expulso do ensino oficial, por ter ideias progressistas, foi nosso Professor de Filosofia e de Psicologia) e Ângela Montenegro Miguel (leccionava História). Partilhavamos, raparigas e rapazes, espaços e conversas, praticavamos a multiculturalidade, no convívio diário com colegas e professores de muitas nacionalidades, das três religiões do Livro e, ainda, de outros livros. Viviamos numa realidade vaga-m-e-n-t-e inter-classista. Uma Escola para a Vida e para o Futuro. Neste contexto, cedo fomos "cidadãos do mundo" e cada um aprendeu a sua canção; foram-se desenvolvendo consciências culturais, políticas e sociais polícromas. Um trágico acontecimento, em Novembro de 1967, iria mostrar cruamente que "o Rei ia nu . . . " (em Novembro próximo, evocá-lo-ei) e colocar muitos/as de nós, definitivamente, graças a deus, no campo do reviralho e no espaço das esquerdas.
Tinhamos, em 1967, 16/17 anos. Ao então 6º ano (cf. foto) do liceu, corresponde o actual 10º ano. A escolaridade obrigatória terminava na 4ª classe. Em Portugal, os alunos que não prosseguiam estudos apresentavam-se ao Exame da 4ª classe e ponto final (ou eventualmente seguiam a via das Escolas Comercial ou Industrial) ; os outros iam a Exame de Admissão aos Liceus (feminino ou masculino, pois sexo e género não se encontravam disjuntos mas os dois sexos, esses sim, em absoluto apartheid). Era a abstracta divisão classista nacional, a marcar, temprano, caminhos diversos e apartados, jamais cruzados, a não ser num futuro longínquo, caracterizado por bem definidos papéis sociais de classe, num previsível cenário onde uns seriam patrões e outros empregados, uns directores e outros dirigidos, uns quadros técnicos, outros amanuenses. Tudo estava, em Portugal, tom sobre tom, "no seu lugar", Fátima e o Milagre incluídos, e mesmo a cadeira manca que, no ano ulterior ao desta fotografia, desalojaria o seu velho e arcaico dono.
Não posso deixar de completar este quadro, acrescentando duas notas sobre tradicionalismo, nomeadamente o que está patente nos papéis sociais de género. Maria de Lurdes Modesto, à época uma muy ilustre senhora, dava aulas de culinária (muito novinhas, aprendemos a fazer court-bouillon e sobremesas várias e a apreciar amplamente o que degustavamos) só às raparigas, claro! A compostura do porte de alunas e alunos (cf. foto) bem como a respectiva genderização normativa, são dignas de análise: as meninas, sentadas e de costas direitas, estão de pernas inclinadas - jamais cruzadas! - e mãos juntas, no colo, quais "princesas elizabetes" (melhor, mães futuras de "princesas dianas ou tarejas"). As mais afoitas fisicamente - mais velhas, mais teen-agers - estão de pé, com sorrisos matreiros mas auto-contidas . . . Os rapazes, de pé ou acocorados - jamais sentados! - estão prontos para as lutas predadoras que os esperavam ao virar da esquina ventosa do liceu. E, last but not least, todos tinhamos farda! Farda semi-livre - com gravata / sem gravata; com collants ou com peúgas - mas farda! E não mascavamos pastilhas elásticas nem durante as aulas nem para a fotografia!
Num outro espaço cultural e educativo, secante a este, e que também fazia franzir a pálpebra salazarenta - a Academia de Amadores de Música - muitos de nós fomos alunos/as de música de Francine Benoît, o rosto visível do projecto musical-pedagógico de Fernando Lopes Graça, então na semi-clandestinidade, por Portugal adentro, a recolher Música Portuguesa com Michel Giacometti.
Bons tempos? Sim, porque eramos jovens e, de certo modo, privilegiados no que à Educação respeita. O país era cinzento e baforento mas os ares e as palavras de França e da Europa "estrangeiravam-nos", ao entrarem-nos, coloridos e plurais, pelos cortexes e hipotálamos adentro: o surrealismo, o dadaísmo, a psicanálise, o existencialismo e o par intelectual-amoroso que o incarnava, o cinema dos Cahiers, o nouveau roman, o expressionismo alemão, as literaturas proibidas (o neo-realismo e os seus opositores), as greves operárias, a noção antropológica de cultura, a École des Annales, os saberes musicais, as práticas das bandas (designavam-se "conjuntos") que se formaram e tocaram no ginásio do Liceu e dos grupos de teatro, e a vontade de fazer uma revolução, dançando... foram cultivando, slowly e pour toujours, várias gerações. Dobravamos a esquina ventosa do liceu com muito mundo dentro de nós e, como o Poeta, talvez antes de o poeta dar as suas palavras à rotativa, nós, cada um de nós era capaz de dizer não! de mil formas e de todas as cores.
E agora? Dançamos? Une Valse à Mille Temps!Nota: a separação entre Ensino Liceal e Ensino Técnico viria a ser objecto de revisão por Rui Grácio, enquanto Secretário de Estado do Ministério da Educação, em 74/75; a opção por uma das vias escolares passou a ser feita não aos 10 anos mas por volta dos 15 anos de idade.
And the dreamers? Ah, the dreamers! They were and they are the true realists, we owe them the best ideas and the foundations of modern Europe(...). The first President of that Commission, Walter Hallstein, a German, said: "The abolition of the nation is the European idea!" - a phrase that dare today's President of the Commission, nor the current German Chancellor would speak out. And yet: this is the truth. Ulrike Guérot & Robert Menasse
quarta-feira, agosto 06, 2008
Nota biográfica. Pessoal mas não só: política também. Os efeitos da slow-education.
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Vera Santana
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7 comentários:
Bonita evocação. E, apesar de a foto estar em ponto pequeno, creio que reconheço a autora do post: a segunda menina das sentadas, a contar da direita. Acertei?
O meu avô foi porteiro no Liceu Francês...
Rui,
O teu Avô não era, por acaso o Senhor Abel?
Não. Raul...
Hum, não me lembro. Não deve ser do meu tempo (1956 a 1967/68). O Sr. Abel, sim, estou a ver a cara e o nosso esforço a contar-lhe ladainhas para conseguirmos sair, para café e cigarro, durante os furos.
Foi nos anos 70.
Claro. Era impossível eu não o ter conhecido.
Já acabaste as tuas férias?
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