domingo, julho 27, 2008

Praga sensual e sensitiva. Praga livre.


O filme "Eu servi o Rei de Inglaterra", de Jiri Menzel, 2006 - cujo protagonista é um franzino "soldado Schveik" de olhos interrogantes e ávidos de Vida, de seu nome Jan Deit, numa Praga ocupada, primeiro pelos nazis, depois pelos sovietes - pleno de sensualidades, de loucura chaplinesca, de desmesura, de gargalhar e de torturas incompreendidas e inconsciencializadas, desconexo aos meus olhos, como alguns filmes dos países europeus outrora dominados pela "former-URSS", foi filmado, em grande parte, num real restaurante do centro de Praga, arquitectado e decorado nos anos 20 do século XX, o Restaurante Francês, sito na polivalente Casa Municipal.

Todas as torturas passam, literalmente e em todos os sentidos, ao lado do protagonista, pequeno Zé Ninguém criado de mesa aspirante a maître, milionário durante a Segunda Grande Guerra, presidiário no regime comunista, mas sempre inocente ... no olhar. Pelo contrário, as mulheres estão bem na sua mira de predador generoso e alegre, à semelhança de Bohumil Hrabal, o escritor do romance por detrás do filme. Ao invés dos pratos gastronómicos, enfeitados para serem comidos, as mulheres são artisticamente transformadas em Naturezas Vivas, com cordões de flores ou com frutos, por Jan, depois de saboreadas, quais "delikatessen", por ele, e voluptuosamente miradas em jogos de espelho, como se se tratasse de duplas obras de arte da autoria do aspirante a maître d´hotel...

O local - Restaurante Francês - e a comida são fabulosos. No filme, à vista, e na realidade actual, do século XXI, também o são ao paladar, ao olfacto e ao tacto.

As imagens de comida mexem com os nossos neurónios do prazer e da luxúria (como n´ "A Festa de Babette"). As de dinheiro - diz o filme - também provocam vivas reacções nos neurónios humanos, sobretudo quando as notas são atiradas ao ar, voam em quantidades inimagináveis, caem no chão, cobrem as paredes, os passeios e as alcatifas. A comida tem cheiro, o dinheiro tem cor...

Um outro fabuloso restaurante de Praga, com vista para o velho Castelo, fica no "former Palácio Pálffy"(em Viena existe mais um). Vindo do início do século XVIII, pertenceu à família de origem húngara Pálffy e Erdodu (Pálffy von Erdöd, na versão outra), tal como o vinho, dourado e seco, com o mesmo nome. Após uma longa tradição de mecenato da Música, o palácio abrigaria o Ministério do Interior durante o regime pró-soviético, sendo reabilitado em meados da década de 90. A Revolução de Veludo impôs o princípio e a prática de devolução integral, dos bens antes nacionalizados, aos proprietários esbulhados ou aos herdeiros familiares.

De facto, para permitir o renascer de uma identidade checa centro-europeia, outra solução não teria sido politicamente possível: sucessivamente espoliado pelos imperadores Austro-Húngaros, pelos nazis da grande Germânia e pelos sovietes da grande união Russa, o povo checo resistiu a todos os imperialismos, para se reencontrar consigo próprio, com Vaclav Havel. Talvez a desconexão palpável nalguns filmes traduza o Absurdo que atingiu, de modos diversos, Checos e Eslavos do Sul (entre outros) levando-os a "enfiarem-se nas suas cavernas" (cf. Emir Kusturica, "Underground") às escuras, crendo crer que a guerra demencial - a acontecer noutro plano que não o vivencial - não poderia nunca ter fim, tal como a Festa permanente em que mergulhavam.

Palácio Pállfy, em Mála Strana, Praga


A dissonância mais não seria, então, do que o estranho produto miscigenado de dois sentimentos opostos, de euforia desmedida e de angústia profunda e entranhada ao longo de gerações, a que se escapa pelo caminho da fantasia, como no cinema de Hollywood, voando numa cama sobre a cidade ou cantando, rindo e dançando. E será, também, resultante de alguma cinematografia que se quis re-ligar à tradição europeia-ocidental, nomeadamente chaplinesca, onde convivem o burlesco e o trágico, e se rasgam mutuamente o indivíduo e a sociedade, no cruzar de heranças de Kafka e de Chaplin. As personagens parecem sempre inocentes infantes de olhos esbugalhados mas, ao contrário das saxónicas e post-vitorianas figuras dos Tempos Modernos, são rotundas, cheias de desejos carnais e de pecados venais. Humanas, quentes e sensuais. Como a comida, a carne e a Festa. E a Bohemia. Excessivas, parecem não caber nos cenários, sobram por todos os lados, enchem os campos visual e auditivo, transbordam como a espuma de cerveja.

1 comentário:

Vera Santana disse...

O Verão perturba a escrita ... este texto precisa de ser revisto mas agora não vou fazê-lo.

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