segunda-feira, junho 11, 2007

Blogue e Tabernas

Conheci recentemente a Palmira Silva num daqueles jantares colectivos, tão frequentes nestes dias mais aquecidos. Sentámo-nos perto. Falávamos de política, de Academia, de Ciência e da vida em geral. De entre vários assuntos apresentados, resultantes numa animada conversa num jantar de Alfama, sugeriu-me uma visita ao seu blogue. Retroqui. Falei-lhe deste. Disse-me do melhor do seu poiso cibernautico. Intriguei-me e investiguei. É o De Rerum Natura [sobre a natureza das coisas]. É do melhor que tenho visto. Alcança um estranho equilíbrio entre o científico e o académico, entre o político e o literário; e consegue conciliar o texto de divulgação com a reacção blogosférica e com a reflexão directa. Está excelente. Parabéns Palmira.

Deixo para amostra um excelente texto sobre as tabernas de Lisboa. Nestes dias de festas, que saudades tenho das noites por aí passadas, com vinho barato, ginga da boa, a pagar em moedas. Já lá vão uns anos…
O texto é assinado por Carlos Fiolhais
EM LOUVOR DAS TABERNAS
Minha crónica do "Público" da passada sexta-feira, acrescentada do resto do poema de Manuel de Freitas (de "Todos contentes e eu também", Campo das Letras, 2000) e da foto de Fernando Pessoa. Acrescento ainda aqui que Emile Zola foi um escritor muito influenciado pelas ideiais de Charles Darwin e de Claude Bernard.

O poeta António Nobre, em “” (“o livro mais triste que há em Portugal”, publicado em Paris, em 1892), descreveu assim a Tasca das Camelas, uma das mais famosas tabernas portuguesas:


“... A Tasca das Camelas
Para mim era um sonho, o céu cheio de estrelas:
Nossa Senhora a dar de cear aos estudantes
Por 6 e 5! Mas ah! foi-se a Virgem dantes
Tia Camela... só ficou a camelice.”


Eça de Queirós e Antero de Quental comeram e beberam nessa tasca, na Alta coimbrã que o Estado Novo haveria de destruir. O Mata-Carochas, um famoso guitarrista brasileiro, publicou em 1907 (comemora-se este ano o centenário) “Memórias do Mata-Carochas”, um calhamaço com cenas da boémia oitocentista. A tasca era assim chamada por ser de três irmãs todas elas Camelas e todas elas com o nome da Virgem. As “Memórias” contam que os estudantes perguntavam a uma qualquer das Marias Camelas: “- Ó Tia Maria, quanto devo aí?”. E a resposta era sempre generosa: “- Filho, tu é que sabes; eu sei lá quanto comeste, nem quanto gastaste? Olha dá para aí aquilo que entenderes que deves”.

Nesse tempo da geração de 70, havia, tanto na Alta como na Baixa, muitas e boas tabernas: a Virgínia das Canjas, a Isabelinha do Escabeche, a Tasca do Buraco, a Taberna do Faria, a Tasca do Damião, a Taberna da Ana da Venda, etc. Com o tempo a camelice foi-se perdendo. Agora até já nos dizem quanto temos de pagar. Mas, para salvar o pouco que resta da camelice, foi criada há três anos a Liga dos Amigos das Tabernas Antigas (era preciso ter LATA!). O seu presidente, o historiador Paulino Mota Tavares, insiste em que se devem designar por tabernas e não tascas ou tascos, os lugares escuros – como um céu nocturno só iluminado pelas “três marias” - celebrados pelo Mata-Carochas. E diz que o objectivo é “salvar as tabernas de Portugal, onde nasceram o fado e os jogos tradicionais”. Ele outro dia chegou-se ao pé de mim, a proselitar, com muita lata, a causa das tabernas. Desconfiando que eu nunca tinha pedido um copo de três num balcão de zinco e que era, portanto, um perfeito ignorante em tabernas, explicou-me o que acontecia aos clientes quando o número de copos ultrapassava a conta. Pois ficavam no “quarto da corda”, uma divisão que tinha uma corda bamba, onde os bêbedos dormiam pendurados com a corda debaixo dos braços. E acordavam na corda...

No século XIX a taberna alcançou as glórias literárias não só aqui como lá fora. Nas Feiras do Livro encontra-se por tuta-e-meia, o equivalente ao “6 e 5” dos versos de António Nobre, o livro “A Taberna” do grande escritor naturalista Émile Zola (no original: “L’Assomoir”, Paris, 1877). Nesse romance a queda no alcoolismo é retratada com um realismo só ao alcance de quem frequentou muitas tabernas (o mesmo Zola haveria mais tarde de trabalhar numa mina de carvão para conseguir escrever a sua obra-prima “Germinal”).

Hoje as tabernas continuam a motivar a literatura. O poeta contemporâneo Manuel de Freitas escreveu o “Poema sumário das tabernas de Lisboa”, o qual, nestes dias de festas populares em Lisboa, pode ser trazido no bolso por qualquer indígena ou turista interessado pelos sítios de louro à porta:


Rua se São Marçal n.º 56, rua de Campo de
Ourique n.º 39, rua de São Bento n.º
432, rua da Cruz dos Poiais n.º 25ª. Calçada
do Combro n.º 38B, rua da Atalaia n.º 13,
rua de São Miguel n.º 20, rua da
Rosa n.º 123. Travessa do Conde de Soure n.º 7,
travessa dos Remolares n.º 21, rua do
Jardim do Tabaco n.º 3, rua da Regueira n.º 40,
rua das Escolas Gerais n.º 126, rua de Santa
Catarina n.º 28. Largo do Chafariz de Dentro n.º 23,
rua Sampaio Bruno n.º 25, travessa de São
José n.º 27, beco dos Toucinheiros n.º 12-A. Rua
Cidade de Rabat n.º 9, travessa do Alcaide
N.º 15-B, calçada de São Vicente n.º 12,
rua das Flores n.º 6, travessa da Espera n.º 54.

Praça das Flores n.º 5.


Pode não ser grande literatura. Mas, se pensarmos em Fernando Pessoa (nascido a 13 de Junho, e que por isso ficou Fernando António), pode ser que, no final do périplo, ela surja... Pois não foi o poeta um dia apanhado numa foto em “flagrante delitro” entre os pipos de moscatel e de abafado na Taberna de Abel Pereira da Fonseca?

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