sexta-feira, outubro 03, 2008

A SANTA CÂMARA

Conheço, superficialmente, Baptista Bastos e Ana Sara Brito. Tenho simpatia pelos dois. Por isso mesmo, esta coisa das casas da Câmara de Lisboa ainda me faz mais impressão. Leio as justificações de um e de outro e fico consternada. Diz Baptista Bastos, na sua coluna de opinião neste mesmo jornal - e neste mesmo espaço -, que em 1997, estando desempregado e com filhos a cargo, vivia numa casa arrendada em Alfama há 32 anos na qual chovia e havia rachas nas paredes e recebeu, na sequência de uma vistoria camarária e de uma análise aos seus proventos, um fogo da autarquia cuja renda se recusa a revelar mas garante ter-se actualizado desde então "ao ritmo da inflação". Diz o Correio da Manhã que B. B. vive num prédio na Estrada da Luz e paga 215 euros de renda. Isso implicará que a renda terá começado por ser de pouco mais de 150 euros. Em contrapartida, uma casa em Alfama arrendada há 32 anos e nas condições descritas teria em 1997 uma renda consideravelmente mais baixa. Logo, se a história é assim e os valores estes, B. B. foi pagar mais na casa da Câmara - embora muito menos do que pagaria por uma casa a preços de mercado. Mudou, pois, para uma casa melhor com uma renda superior - coisa normalíssima, não fosse dar-se o caso de a casa ser camarária e de ninguém conseguir explicar quais os critérios que presidiam, em 1997, à atribuição de casas da Câmara. Explico melhor: é garantido que outra pessoa qualquer a viver num apartamento velho com rachas onde chovesse e com rendimento igual ao auferido em 1997 por B. B. conseguisse uma casa da Câmara igual à dele?
Naturalmente, não é a Baptista Bastos que cabe responder à pergunta acima. Ele limitou-se a solicitar e a aceitar. Não terá querido saber dos critérios nem da igualdade ou até da justiça. Achou que tinha direito e quem de direito (ou seja, quem detinha a posse das casas e o poder de as atribuir) deu-lhe razão. O caso de Ana Sara Brito é mais complicado. Porque Ana Sara Brito é neste momento vereadora, e porque era vereadora aquando da recepção da casa que o presidente Kruz Abecasis lhe arrendou em nome da autarquia, há 21 anos. Ana Sara Brito tinha obrigação de se interessar pelos critérios, pela igualdade e pela justiça. Porque tinha um cargo camarário e porque esse cargo era o da acção social. Sobre os critérios, porém, diz-nos hoje que "eram os da época". E da renda diz que era "legal". E que está "de consciência tranquila". Diz nada, portanto.
Este triste assunto não deve transformar-se num auto da fé de B. B. e de Ana Sara Brito. Por todas as razões, sobretudo a de que o assunto é muito maior que eles. O que está em causa, e não será de mais repeti-lo, é o que de pior existe em qualquer administração pública - a opacidade, o favorecimento discricionário, a assunção dos bens públicos como propriedade de "quem está" e o seu tráfico entre escolhidos. Se em vez da "atribuição" de casas estivéssemos a falar da de envelopes de papel pardo com notas lá dentro, estaria já tudo aos gritos, a começar por Sá Fernandes e Helena Roseta, esses indomáveis campeões antinegociatas. Mas, como na lenda da Rainha Santa, o dinheiro está transformado em casas. Pode-se fazer de conta que não se passou nada.
Fernanda Câncio

1 comentário:

Vera Santana disse...

Zé,

Esqueceste-te de indicar a fonte: Jornal e data.

V.

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