domingo, novembro 26, 2006

No fundo, acabou-se a revolução e cada um foi à sua vida.


Do Público de 25 de Novembro.
Almada Contreiras, o"gonçalvista" que assume ter a história seguido, há 31 anos, "pelo caminho certo"

Uma investigação de João Mesquita

O PÚBLICO revela uma carta , escrita na cadeia, de um dos militares mais destacados da esquerda militar derrotada a 25 de Novembro de 1975

Solta uma sonora gargalhada quando se lhe pergunta se os "gonçalvistas" tinham um plano para a tomada do poder em 25 de Novembro de 1975. Retomada a fala, responde: "Se tivéssemos, tínhamos tomado. Nós não falhávamos." Carlos de Almada Contreiras chefiava, então, o Serviço Director e Coordenador da Informação (SDCI), a funcionar na dependência do Conselho da Revolução (CR). No princípio de Dezembro é preso. De Caxias, escreve uma carta ao Presidente da República, Francisco Costa Gomes, criticando violentamente a "altivez de vencedores" dos "novos senhores do poder". Hoje, 31 anos volvidos, reconsidera: "A História foi pelo caminho certo."
Em 25 de Novembro de 1975, o comandante da Marinha Almada Contreiras é um dos "homens fortes" da chamada corrente gonçalvista das Forças Armadas. Membro destacado do CR, lidera os novos serviços de informação, criados meia dúzia de meses de antes e onde tem por camaradas José Pereira Pinto, oriundo da Força Aérea, e Luís Macedo, do Exército. Estudiosos da época, como o espanhol Josep Sánchez Cervelló, apontam-no como "figura de proa" do plano alegadamente traçado pelos adeptos do ex-primeiro-ministro Vasco Gonçalves "para conquistar o poder, quando houvesse condições para isso" [Cervelló, A Revolução portuguesa e a sua influência na transição espanhola, Assírio e Alvim, 1993].
"Se tivéssemos um plano para a tomada do poder, tínhamos tomado"Contreiras, hoje com 65 anos, nega qualquer intenção do género. "Se tivéssemos um plano para a tomada do poder, tínhamos tomado. Nós não falhávamos", assegura o antigo membro da Comissão Coordenadora do Movimento das Forças Armadas (MFA), em longa conversa telefónica mantida com o PÚBLICO. Entende, aliás, que " a história do 25 de Novembro está por fazer". Mas, quando se lhe pede a sua versão dos acontecimentos, limita-se a sustentar que "cada força" em confronto "pôs tudo a mexer". Escusa-se, inclusive, a revelar novos pormenores sobre a direcção do processo que levou à ocupação, por parte de tropas pará-quedistas, do comando instalado em Monsanto e das bases áreas de Tancos, Monte Real e Montijo: "Eu não sou o [José] Mattoso [historiador]." Tudo quanto se lhe "arranca" é a convicção de que se tratou de um "acto infeliz, que só serviu para sacrificar" os revoltosos". Seguida de uma leitura genérica: "A História foi pelo caminho certo."
Certo é que Almada Contreiras é preso poucos dias depois. No princípio de Dezembro, um oficial da Marinha, escoltado por uma força de fuzileiros, bate-lhe à porta de casa, já a noite vai adiantada. O antigo membro da comissão coordenadora do programa das Forças Armadas invoca a hora para se recusar a acompanhá-lo. O oficial, ex-camarada de Contreiras em Angola, faz um telefonema para o Estado-Maior da Armada e parte sem dar cumprimento à ordem de detenção. Já de madrugada, Almada Contreiras apresenta-se, ele próprio, aos superiores hierárquicos.
A 26 de Novembro, demitira-se do CR, em protesto por ter sido impedido de visitar os militares presos em Custóias. Agora, é conduzido ao presídio de Santarém. Poucos dias depois, juntamente com outros seis membros da Armada, é transferido para o forte do Areeiro, em Oeiras. Nas vésperas do Natal, recebem todos guia de marcha para a Trafaria. É aqui que ainda estão detidos alguns antigos membros da PIDE e suspeitos de envolvimento no "28 de Setembro" e no "11 de Março", como Kaúlza de Arriaga. Quando vêem entrar os homens da Marinha, começam a cantar: "A 13 de Maio na Cova da Iria..." Contreiras e seus camaradas respondem com o "Grândola Vila Morena". São transferidos para Caxias e colocados sob isolamento. Por lá se manterá o ex-chefe do serviço de informações, até ao princípio de Março de 76.
Uma carta "muito importante"
Hoje, Almada Contreiras recorda isto tudo com risos pelo meio. "Foram acidentes de percurso", justifica. A verdade é que, a 15 de Janeiro de 1976, escreveu uma carta a Francisco Costa Gomes - classificada de "muito importante" pelo Presidente da República de então -, denunciando as condições prisionais dos militares de esquerda e criticando violentamente "os novos senhores do poder" e a sua "altivez de vencedores" (ver na página ao lado). O mesmo fizera, duas semanas antes, o antigo camarada de SDCI, José Pereira Pinto, que evitara a prisão refugiando-se na Suécia. As duas missivas constam do espólio do falecido ex-Presidente, depositado no Centro de Documentação 25 de Abril, da Universidade de Coimbra.
A influência de Contreiras é antiga. Envolvido em actividades de oposição à ditadura desde finais dos anos 60 do século passado, é ele quem acerta com o jornalista e escritor Álvaro Guerra a transmissão, através da Rádio Renascença, da Grândola, como senha para o arranque das operações que culminam no derrube do Governo de Marcello Caetano. Medida que se impusera após a constatação de que o sistema militar de comunicações não servia.
Quando é libertado de Caxias, o antigo conspirador antifascista parte para Moçambique, onde trabalha, durante uma década, no sector das pescas. Primeiro, junto do Governo, depois, a título particular. "Dizem que fui um empresário de sucesso, mas não acredite", diz, antes de soltar mais uma enorme gargalhada. De regresso a Portugal, ajuda o então presidente da Câmara de Cascais, José Luís Judas, a gerir o património militar da vila e a instalar a polícia municipal. Fora aconselhado pelo antigo camarada de armas e irmão do autarca, Miguel Judas, e acha a experiência "muito curiosa". Tanto que se mantém à frente da polícia durante todo o primeiro mandato do sucessor de Judas, António Capucho. Quando o vereador responsável é Luís Marques Guedes, actual líder da bancada do PSD na Assembleia da República e homem a quem Contreiras não poupa elogios. Tal como faz em relação a José Luís Judas. Não hesita, de resto, em considerar o processo que conduziu à queda autárquica do antigo sindicalista como um exemplo de "pulhice humana".
Hoje, já reformado, Almada Contreiras passa parte do tempo na casa que possui nos arredores de Vila Nova de Mil Fontes. Arruma papéis, lê, passeia. "Estou-me a desforrar dos muitos meses de férias em atraso que tinha", explica. Assume-se como um "evolucionista" ("se não houvesse evolução ainda estávamos no tempo dos dinossauros"), mas garante não sentir que "tenha passado para o outro lado". Considera que "só uma pessoa muito ignorante ou mal intencionada é que nega que o país melhorou", mas ressalva: "... Não tanto como eu desejaria, mas..." Quando se lhe pergunta como se situa ideologicamente, responde: "Como sempre me situei; livre como um passarinho. Sócio, só da Associação 25 de Abril, do Clube Militar e do Clube Naval da Marinha." "Então, e o "gonçalvismo" ?", ainda questiona o jornalista. A resposta vem de pronto: "Hoje, quem é que não é crítico dele? No fundo, acabou-se a revolução e cada um foi à sua vida."

1 comentário:

Joss disse...

Foi com muito agrado que li esta passagem e esta refer|encia a Almada Contreiras. De 1985 a 1987, servi a Marinha de Guerra Portuguesa, no Estado Maior da Armada - Serviço Militar Obrigatório. Residia, no entanto, no INA - Instalações Navais de Alcântara, onde conheci e privei com Almada Contreiras, nomeadamente em jantares no INA em que ele nos dava o prazer da sua inestimável companhia. Um senhor, de resto! Adorei revivê-lo!
Guilherme Pereira

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