sábado, novembro 18, 2006

Sottomayor Cardia


Mário Augusto Sottomayor Leal Cardia [1941-2006]

Hoje morreu o Cardia.

Político, Filósofo. Escritor, Polemista. Professor, Ministro. Louco.
Morreu mais um bom pedaço do século XX português. Outro.
Com ele é-nos arrancado, à força e com violência, um dos pilares da nossa contemporaneidade, o que se sustentava na possibilidade utópica de poder a Ética ser valor corrente.
Conheci o Cardia recentemente, em ambiente universitário. Já não tinha o vigor dos seus anos áureos, onde a simples percepção da sua presença aterrorizava adversários políticos, da direita à esquerda, tal a reputação que construíra. Li-o na Constituinte, na análise dos seus diários, e admirei o seu verbo e a sua fibra. Dele sempre se esperava um último tiro, uma última finta, daquelas que encanta a plateia e chateia a outra equipa.
Entrevistei-o um par de vezes, tive a honra de ler e opinar, a pedido do próprio, sobre parte da sua autobiografia (penso que ainda por publicar) e de partilhar a mesa de uma célebre conferência sobre os 30 anos do cerco à Constituinte (organizada pelo Clube «Loja de Ideias», na Biblioteca Museu República e Resistência). Com ele aprendi e ouvi. Troquei impressões e polemizei (na dita conferência). Mantinha, ainda, a acutilância que o celebrara. Vislumbrava-se ainda os tiques do franco-atirador socialista do PREC, do incendiário da Constituinte, no seu corpo franzino. Percebia-se com facilidade que era homem de se impor pelas palavras, não pelo físico. Foi preso, torturado, marcado, nos cárceres da polícia política do Estado Português. Pelas suas opiniões. Pelo que dizia, e queria dizer.
Nas poucas conversas que mantivemos, todas elas longas, embebia-me, com facilidade nas suas histórias, nos episódios e nas tramas que acumulou, ao longo de três décadas politicamente muito activas. Ouvi-lo falar dos seus bastidores era, para mim, um rito de aprendizagem sincero. Ele não era dos que se servem da política para se engrandecerem, nada que se parecesse. Era vaidoso, certo, mas intelectualmente. Interessava-lhe, penso, a virtude e a boa análise; a rápida percepção do estado do jogo, do valor do adversário, da próxima jogada. A antecipação.
Mário Sottomayor Cardia é, para quem não se lembre, central para se entender a configuração democrática do Portugal contemporâneo. É figura decisiva no processo de transição português, na medida em que carregou o peso de ser o porta-voz do Partido Socialista em pleno PREC. Era dos principais estrategas socialistas, tanto na «Seara Nova» como nos bancos da Constituinte, não se entendendo o papel do PS na transição à democracia sem ele. É, sem qualquer dúvida, um dos pais do nosso regime.
Foi deputado e Ministro, deu-nos listas de discursos, mais um ano de Liceu (o 12º ano) e números clausus. Foi escritor e filósofo, publicando sobre política vária, retirou o socialismo dos seus dogmas, enquanto pelava a ética Sergiana. Foi professor e polemista, expressando-se de cátedra como um louco deambulante em sinfonias próprias. Já há algum tempo que não vivia cá. Ficara-se no que tinha feito. Estava tão bem lá…
Hoje, quando me deparo com os fundamentos da nossa democracia, com os ideais de Liberdade, de Solidariedade e de Fraternidade, recordo a ética política defendida por Sottomayor Cardia, da profundidade das suas opiniões, da firmeza do seu carácter, da sua luta pela libertação de Portugal. Ficámos menores. Bem menores.
Morreu um Político, Filósofo. Escritor, Polemista. Professor, Ministro. Louco.
Morreu Mário Sottomayor Cardia.

Lisboa, 17 de Novembro de 2006
José Reis Santos

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