segunda-feira, setembro 19, 2005

Paul Verlaine

A porta envidraçada do café abriu-se a custo num movimento musical.
Com o vento enregelante de Novembro, cliente habitual, entra um intruso, o que lhe paga sempre as bebidas, o que lhe abre sempre gentilmente a porta.
A gentileza trá-la nas pernas coxas.
É um homem acamado, de longas barbas a grisalhar que desesperadas tentam esconder as concorrentes mais novas, ruivas e selvagens, presas na roda da Inquisição jesuíta.

Acamado?
Sim, amarrou a cama para poder escapar.

Por entre as lutas selvagens das suas barbas, dois olhos orientais: um, francês, o líder desde a infância, o outro, alemão, o rebelde com quem combatera há um quarto de século, pelas ruas da Utopia, brandindo a caneta e o papel nas mãos como armas de guerra.

Senta-se.

O dono do café já sabe.

É um vício. Até certa altura só conhecera nele a alegria e o cambalear...depois, o matar de mães, o queimar de cabelos de mulheres... finalmente, o devaneio do desconhecido. Nessa altura entrou no baile do Grande Maldito. Uma criança soprou-lhe o século XX ao ouvido, ele não resistiu e abandonou tudo por um triunvirato vagabundo. Eles e a poesia. Só eles e a poesia.
Mas, a poesia é um material facilmente inflamável. Por vezes, arde-nos nas mãos, outras vezes, na cabeça... e ainda assim, das suas cinzas crescem coisas maravilhosas.

A criança recusou-se a continuar a ser profeta e partiu em direcção ao Sol e ele ficou sozinho com as cicatrizes das queimaduras do seu fogo. Nunca mais o esqueceu. Por vezes, ainda julga vê-lo...na esquina de um delírio ou no intervalo de uma insónia.

O copo enche-se de verde e torna-se bola de cristal. Os fumos eróticos do Desconhecido afagam-lhe as narinas invisíveis, tomam a forma de mãos adolescentes, finas, ríspidas, quentes...e ele sabe, sente que a visita diária está a chegar tal qual há vinte e cinco anos atrás, como um barco bêbado entra num cais em derrocada.


Publicado em 4 de Setembro no DN Jovem - Diário de Notícias

1 comentário:

Willespie disse...
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