segunda-feira, outubro 31, 2005

À Alma de D. Pedro IV, nos Elísios

Eça de Queiroz na carta À Alma de D. Pedro IV, nos Elísios, de agosto de 1872, refere-se às seculares rivalidades entre Porto e Lisboa, com uma perspicácia que não é invulgar no autor. Invulgar, é a forma de confrontar as duas cidades.

« É necessário que Vossa Majestade saiba que existe uma incurável rivalidade moral, social, elegante, comercial, alimentícia, política, entre Lisboa e Porto. Lisboa inveja ao Porto a sua riqueza, o seu comércio, as suas belas ruas novas, o conforto das suas casas, a solidez das suas fortunas, a seriedade do seu bem-estar. O Porto inveja a Lisboa a Corte, o Rei, as Câmaras, S. Carlos e o Martinho. Detestam-se. As damas de Lisboa riem-se da pouca distinção, da pequena ciência, de falta de chique e de quê das toilletes do Porto? O Porto, rubro de ódio, cobre as senhoras da sumptuosidade dos estofos e das faíscas dos diamantes.

Lisboa tinha touros. O Porto quis ter este bom tom de lezíria. Mas faltava-lhe o bom gado, os artistas, a faísca da troça, o estonteado especial das touradas daqui. Ah, sim? Em lugar de uma praça o Porto ergue duas. Mas consegue apenas ser duas vezes pior. Bem! O Porto sorri-se e para se desforrar, faz corridas de cavalos. Grande troça nos sportsman a pé do Chiado: vamos batê-los, diziam, vamos batê-los desalmadamente. Chegaram lá; foram chatamente batidos.

O Porto tinha a Foz, praia banhos, rica, de um grande pitoresco de paisagem. Lisboa, rancorosa, improvisa Cascais, sítio enfezado entre pinheiros hécticos e rochedos de ópera cómica.

Os poetas do porto fazem sorrir, no Chiado, os líricos da corte, descendentes dos vates parasitas do adro de S. Domingos: mas os da Águia de Ouro abrem sobre as mesas as odes de Vidal, e entornam-lhes em cima, como único comentário digno, molho de carne assada.

O Porto por circunstancias, é reformista: eis que Lisboa se veste de um grande desdém pelo Sr. Bispo de Viseu, António.

Em Lisboa houve ùltimamente um certo movimento subterrâneo, indistinto, informe, do espírito republicano: o Porto recebe el-rei, com um delírio que só vossa magestade inspirou nos dias em que se passeava a pé, com a sua estreita farda de coronel de caçadores, de cravo ao peto, e batia, com as pontas dos dedos, nas faces rechonchudas das mulheres do Candal.

Lisboa come com pretensões francesas e fantasistas: logo o Porto se afoga, cada vez mais, no chorume da velha cozinha portuguesa, e abraça-se, como a um estandarte, à travessa do cozido.»

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