sexta-feira, agosto 18, 2006

(ainda) Marcelo


Interessante entrevista à filha de Marcelo Caetano, integrada no especial comemorativo sobre a esperança de 69. Com direitos a cortes cirúrgicos e tudo (não foi em directo, ao contrário do que é costume), procurou-se passar, durante a hora e meia de conversa, algumas ideias demasiado óbvias e mal disfarçadas.
Alguns exemplos. Apesar das tentatives da Judite em colar Marcelo Caetano a umas humildes origens, lá admitia Ana Caetano que a família era «de província», onde o pai, que sabia ler e escrever, chegou a Director-geral, os tios eram todos licenciados (pelo que percebi), onde as irmãs eram profesosoras primárias (que vulgaridade) e que tivera uma infância de «pequeno príncipe». Ideia furada Judite, não? Talvez classe média/média alta, muito educada, de província. Povo? Não me parece.
Depois, e aí de forma inteligente, a colagem multigeracional entre Marcelo, Joao de Barros e os Rebelo de Sousa. Marcelo Caetano, caso não saibam, casou com a filha do grande pedagogo, «homem de esquerda» nas palavras de Judite, João de Barros. O seu filho, Henrique de Barros, seria, pelo PS, Presidente da Assembleia Constituinte em 1975. A relação entre ambas as famílias? De normalidade, atracção intelectual e desavenças políticas, nada de mais. Mais tarde, assim como havia sido natural essa relação, também os Rebelos de Sousa (Baltasar e o seu filho Marcelo) os Rogeiro (Nuno Rogeiro e o Pai), os Melo e Castro, os Freitas do Amaral, os Galvão Teles, o Adriano Moreira se relacionariam com o pai Marcelo. Há uma ideia, essa certa, de uma certa imobilidade endogénica da elite política e intelectual que se perpetua e respeita além dos regimes políticos que patrocina. Assim como João de Barros vira em Marcelo um intelecto irrequieto de génio, e o respeitara por isso, também Caetano viria em Adriano Moreira , Marcelo Rebelo de Sousa (e Nuno Rogeiro???) espíritos de formação impar e de futuro. Não nego a existência destas relações, nem o que as características previsíveis do recrutamento político e universitário. Não acompanho é a colagem «liberal» e tolerante que acompanha o discurso. Casar com a filha de João de Barros é deixar de ser peça integrante, fundacional do Estado Novo? Dos seus principais teorizadores? É esquecer todo o percurso feito em (quase) todas as instituições do regime. É que Marcelo foi professor nas Universidades, Reitor, Deputado à Assembleia Nacional, Ministro (varias vezes), procurador à Câmara Corporativa, dirigente máximo da Mocidade Portuguesa e da União Nacional (e, mais tarde, da Acção Nacional Popular). Escapou à Legião Portuguesa e a ser agente da PIDE. Ser doutor em Direito, professor emérito é esquecer a noção de Estado e Democracia que tinha? Só se enalteceram qualidades. E, naturalmente, estas passaram aos seus discípulos. Deles, o que lhe herdou o nome, hoje transporta bem a sua memória.

No resto da entrevista, gostei da atitude relaxada da Ana Caetano, demasiado óbvia quando entrava nas perguntas – respostas clichés (Africa, a Guerra e a Descolonização; o 25 de Abril), mas naturalmente imprevisível e correctiva qb (como quando corrigiu a Judite acerca das origens humildes do pai) e mesmo agradável (como quando contou o seu 25 de Abril ou quando se aventurava mais nas suas memórias). Interessantes dois promenores. Um ao denunciar o arranjo da entrevista (fui ver isto depois da nossa conversa…) e outro sobre o corte, visível, a meio da entrevista.
Judite, para variar, perdeu uma óptima oportunidade de poder retirar muito mais da filha do último Presidente do Conselho do Estado Novo. Demasiado previsível, deu várias respostas com as perguntas (foram os ultras, não foram?), errou nalgumas partes (como nas origens), não deixou a entrevistada entrar no programa e, pior, deixou no ar a impressão de uma entrevista programada e objectivada – amaciar a memória do pai de Ana.
Depois da entrevista, e sem intervalos, um documentário especial sobre Marcelo Caetano. Péssimo. Com erros – a Câmara Corporativa é de 1934 e não de 1932 [errata, por reparo do Rui Pedro, que notou a repetição do ano de 1934], a Mocidade Portuguesa não substitui a Acção Escolar Vanguarda – e sem chama. Clichés atrás de clichés (três partes – Primavera / Outono e Inverno), nunca entraram no Homem, na sua educação, na sua formação ideológica, no seu percurso político. Deixaram os anos correrem, com as datas a imperarem, sem análises ou ligações. Uma colecção de imagens (que bom arquivo tem a RTP) narradas, sem fio ou sumo. Na ficha técnica (que estive atento) nem consultores, arquivos consultados, nada. Trabalho da casa, feito em casa com a casa (podiam ter consultado um arquivozito…). Perda de tempo e de recursos. Já não deviam estar pessoas de valor atrás destes projectos?
Enfim, um bom serão televisivo a pedir mais. Para quando o próximo?...

2 comentários:

Unknown disse...

Meu caro: "Com erros – a Câmara Corporativa é de 1934 e não de 1934"; decide-te lá... é de 1934 ou de 1934? E se for de 1934, está errado? É que com as tuas investigações, também se pedia mais nesta questão ;P. Corrige lá a tua correcção!

José Carlos Pereira disse...

Subscrevo a 100% este post de José Reis dos Santos. A entrevista feita por Judite a Ana Maria Caetano foi mais de carácter cor-de-rosa, ou seja, até encaixava mais nas páginas da revista Lux ou na Caras.
PS - Admito que Marcello, pessoalmente, tivesse qualidades humanas: no blogue "Estudos Sobre o Comunismo" é referido que uma militante comunista foi libertada após um dos seus filhos, de 15 anos, ter escrito ao ditador, não obstante a senhora não ter abdicado das suas ideias e do combate à ditadura. Porém, no dia 25 de Abril, tal como refere Vasco Pulido Valente, Marcello deu ordens para que a GNR massacrasse o banho de multidão que se aglomara no Largo do Carmo. Se não tivesse faltado o apoio militar, aconteceria um banho de sangue.
Era isto - a da história da comunista libertada e a da ordem para o massacre - que Judite de Sousa poderia ter referido, bem como a desvinculação de Caetano, no fim da vida, no exílio, em relação à fé religiosa que antes professava, a sua ironia em relação à Igreja, aos padres e a João Paulo II; o facto de ter dito tal mal de todos - da Esquerda à Direita -, excepto do Diogo [Freitas do Amaral]; a sua zanga com Adriano Moreira.
Ontem, de facto, tentou-se branquear a História.

José Carlos Pereira - Diário de Felgueiras

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