quinta-feira, junho 01, 2006

Proposta A

PROPOSTA A
(31.614 caracteres)


A REFORMA DO SISTEMA ELEITORAL PORTUGUÊS (para a Assembleia da República)

Resumo das matérias tratadas

A subversão do princípio da separação de poderes
O controlo parlamentar do poder executivo
A tendência para a concentração de poderes
Democraticidade interna plena nos partidos políticos
Proibição constitucional da disciplina de voto

A fiscalização do Governo
Vinculação jurídica ao Programa de Governo
Cumprimento das regras orçamentais e criminalização das infracções

A independência dos deputados
Os vícios inerentes à designação dos candidatos
A dependência em relação aos directórios partidários
Sujeição e inoperância das maiorias parlamentares
Manipulação do Parlamento pelo Governo

A inconstitucionalidade da disciplina de voto
Inconstitucionalidade primária e inconstitucionalidade secundária
O voto como direito pessoal
A soberania aparente do Parlamento e a soberania real dos partidos

A limitação do poder executivo
A isenção dos deputados
Instituição de um círculo nacional único
O regime de incompatibilidades dos deputados
Fiscalização parlamentar versus apoio ao Governo

Contra os círculos uninominais
Os perigos dos círculos uninominais
A regra da correspondência territorial entre círculos e mandatos


A REFORMA DO SISTEMA ELEITORAL PORTUGUÊS
(para a Assembleia da República)
A subversão do princípio da separação de poderes

Há quem diga que o principal obstáculo ao progresso são os maus governos. A acusação não é inteiramente justa, porque não vai à raiz das coisas: os maus governos resultam muitas vezes, como consequência previsível, dos maus sistemas políticos.
Os maus sistemas políticos propiciam os maus governos quando permitem que estes não sejam convenientemente fiscalizados. E a verdade é que, dado o actual modo de funcionamento dos partidos, os governos estão praticamente isentos de qualquer fiscalização, apesar de sujeitos a ela em teoria.
De acordo com o princípio fundamental da separação dos poderes (que seria, aliás, mais adequado e realista chamar de repartição dos poderes), cabe aos deputados eleitos, quer no seu conjunto quer em comissões especializadas, exercer o controlo parlamentar do poder executivo. Esse controlo deve incidir sobre, pelo menos, três vertentes: a própria eficácia governativa, avaliada nos seus resultados e métodos; o cumprimento efectivo dos programas de governo e dos planos plurianuais; o rigor da execução orçamental. Nada disso, porém, se vê acontecer. O Parlamento critica ou elogia, encobre ou denuncia, mas não controla nem sanciona.
O facto não é sequer surpreendente. Como se pode esperar que o Parlamento actue como um órgão de fiscalização do governo, se a mesma direcção partidária escolhe os membros do governo e os da maioria parlamentar? Se os dirigentes dos partidos são os principais responsáveis pela composição das listas de deputados, como têm estes a independência política necessária para fiscalizar a actuação governativa de quem decide da sua própria carreira como membro do Parlamento?
A evidência é esta: a separação de poderes esfumou-se completamente. A teoria política e a doutrina constitucional foram habilmente subvertidas e criou-se uma situação de facto que se traduz numa escandalosa concentração de poderes. Não se pode dizer, em rigor, que a maioria parlamentar emana do governo, pois este só é constituído depois de apurada a maioria; mas nas circunstâncias actuais é o vencedor eleitoral que, antes ainda de o ser, superintende na composição das listas de candidatos de onde sairá a maioria. Ou seja: enquanto líder partidário, o futuro primeiro-ministro escolhe os membros da futura maioria parlamentar – o mesmo será dizer: escolhe a maioria dos membros do órgão político que supostamente deverá depois controlar o seu governo. Ou se preferirmos em termos mais crus: o fiscalizado escolhe os seus fiscais. Pode imaginar-se maior perversão dos princípios?
O resto deduz-se facilmente. Em teoria, os deputados deveriam ser politicamente responsáveis perante o eleitorado, que é quem os elege; mas, na prática, são muito mais responsáveis perante a respectiva direcção partidária, que é quem os indigita. E o problema é que alguém, antes de ser eleito, precisa de ser candidato; antes de ser deputado, precisa de ser admitido numa lista eleitoral. Se só o for, agora ou no futuro, em função da sua esperada fidelidade política e da subserviência às orientações recebidas dos órgãos máximos do respectivo partido, a sua carreira parlamentar resume‑se a duas alternativas simples: a de ser um deputado sem independência ou um independente sem mandato (pelo menos, sem o próximo mandato...). Qualquer veleidade de fiscalização efectiva equivaleria a um anúncio de suicídio político. É por isso que tal veleidade, no nosso sistema e noutros semelhantes, fica exclusivamente reservada para a oposição, que a desempenha por dever de ofício, sujeita a um constrangimento em tudo análogo. Para a oposição, só a perspectiva muda: aí a perene obrigação é a de estar contra. E como se trata, salvo indicação em contrário, não de estar contra isto ou aquilo, mas contra tudo o que o governa faça ou pretenda fazer, a fiscalização séria que daí resulta é absolutamente nenhuma.
Esta é a primeira perversão do sistema democrático que urge eliminar: a dependência política dos deputados (ou dos candidatos) em relação às respectivas direcções partidárias. E isso só será possível de uma maneira: introduzindo obrigatoriamente a democraticidade interna plena nos partidos políticos. Os candidatos a deputados devem ser sufragados no interior dos próprios partidos, isto é, devem ser escolhidos em eleições internas, disputadas por voto universal e secreto entre listas concorrentes, fazendo-se o respectivo apuramento segundo o critério da representação proporcional, em círculos eleitorais territorialmente coincidentes com os das eleições legislativas.
Escusado será dizer que esta alteração representará uma autêntica revolução democrática no interior dos partidos políticos. Supondo-se desde logo que idêntico método acabaria por prevalecer para a selecção dos candidatos autárquicos, inviabilizando a imposição de candidatos externos à revelia da vontade das secções concelhias, décadas de tradição no controlo do aparelho partidário pela facção dominante seriam assim contrariadas num ápice. Os órgãos internos dos partidos e os seus rostos mais visíveis na política seriam uma mais saudável expressão da emulação interna dos seus militantes e não um produto indesejável das prerrogativas e prepotências das instâncias superiores do aparelho. Seria a vitória do mérito sobre a subserviência, ou pelo menos a da credibilidade individual sobre a mera ortodoxia. Acima de tudo, seria a garantia da possibilidade de independência política daqueles que se candidatam a cargos públicos electivos.
Mas, apesar de parecer decisivo, este passo ainda não basta. De que vale que haja candidatos escolhidos sem a condição prévia da subserviência aos dirigentes, se os que venham a ser eleitos ficarem depois tolhidos e amordaçados por essa forma de política torcionária da consciência que dá pelo nome de “disciplina de voto”? Para que precisa um Parlamento de ter duzentos ou mais deputados condenados a não ter opinião própria (ou a não expressá-la livremente), coarctados na sua capacidade crítica e fiscalizadora pelas limitações impostas pela direcção da sua bancada parlamentar (que por sua vez acata instruções da respectiva direcção partidária)? É uma lógica de aparatchiks que assim se instala dentro do próprio Parlamento, fortalecendo artificialmente os líderes partidários e desprotegendo o povo eleitor.
A experiência recente do descontrolo orçamental dos governos socialistas, com o seu longo cortejo de expedientes e de abusos, revela à saciedade quanto ficam vulneráveis os contribuintes, as finanças públicas e a economia perante governos que não são eficazmente fiscalizados. E o pior é que não é sequer de esperar que o venham a ser, quaisquer que sejam as suas cores ideológicas, enquanto a maioria parlamentar for apenas uma extensão política do próprio governo, composta por antecipação, em vez de ser o governo uma extensão da maioria parlamentar, gozando esta de um efectivo ascendente político sobre aquele. Da maneira como as coisas realmente se passam, não é o poder legislativo que controla o poder executivo. É exactamente o contrário.
Para evitar esta grave perversão do sistema político, que se torna afinal uma autêntica desfiguração do próprio regime democrático, tal como muitos reconhecem em privado mas não admitem em público, é necessário conjugar duas medidas: a plena democraticidade interna dos partidos políticos, reflectida na obrigatoriedade da eleição interna dos candidatos a cargos públicos electivos, e a proibição constitucional da disciplina de voto.
Quanto a esta última, não é só pela lógica do sistema político que há muito deveria ter sido banida. Que terceiros, sejam eles quem forem, possam controlar ou determinar o voto político de alguém é uma aberração que nunca poderia encontrar justificação ou fundamento em matéria de direitos, liberdades e garantias. Se a independência de voto dos simples cidadãos é um princípio sagrado em democracia, como o poderia não ser a independência de voto dos eleitos, sejam eles deputados ou membros das assembleias municipais? As consequências são da maior importância prática: é que só com independência poderão realmente exercer a sua função fiscalizadora sobre o poder executivo.

A fiscalização do Governo
Um facto reconhecido por muita gente como óbvio é que o Parlamento não fiscaliza adequadamente o Governo. E não o faz, pelo menos, sob dois aspectos cruciais: quanto à sua vinculação ao programa com que os partidos vencedores se apresentaram ao eleitorado; e quanto ao cumprimento das regras orçamentais.
Que um partido ou uma coligação convertidos a governo possam arbitrariamente quebrar as suas promessas eleitorais, não apenas por omissão, mas fazendo exactamente o contrário daquilo que prometeram, pode parecer coisa de pouca monta que não mereça mais do que o inevitável arrazoado jornalístico. Mas é, de facto, um fenómeno grave: significa que a mentira e a fraude são aceites como legítimas para ganhar eleições, que vale tudo para captar votos e que, afinal de contas, na democracia não se votam realmente ideias e projectos, mas apenas pessoas e partidos. O que perverte a natureza do regime e transforma o exercício do voto numa mera prática referendária para a escolha dos líderes – portanto, algo próximo do plebiscito.
Se os partidos vencedores não ficam vinculados aos seus programas eleitorais, então estes não servem rigorosamente para nada – a não ser para aliciar os incautos. Para o país, no entanto, o que mais interessa são as reformas e as contra-reformas que os futuros possíveis governos se propõem executar e não os nomes e rostos de quem eventualmente as concretizará ou de quem, na pior das hipóteses, as deixará por fazer.
Quanto ao orçamento do Estado, é certo que em boa parte ele se baseia em meras previsões de receitas e despesas, e que prever fluxos financeiros não é a coisa mais fácil deste mundo. Mas há regras mínimas de rigor e de equilíbrio que devem ser obrigatoriamente respeitadas, sob pena de se cair na quase discricionariedade e de a aprovação parlamentar do orçamento não passar de um espectáculo anual de circo que anuncia a proximidade das festas natalícias, período em que os espíritos e os cordões das bolsas andam mais soltos. Mas com a importante diferença de, para o Governo e as autarquias, passar a ser Natal durante o ano inteiro.
Quais as soluções para moralizar a vida política nestes dois aspectos?
O único crivo político que pode actuar regularmente contra a fraude governativa é o Parlamento. É a ele que cabe o principal papel fiscalizador e essa é uma das suas funções fundamentais.
Por um lado, é indispensável que as coligações ou os partidos vencedores fiquem juridicamente vinculados aos seus programas eleitorais de governo e que não disponham da possibilidade de os violar arbitrariamente. Todos os actos governativos que sejam contrários ao programa sufragado, ainda que sejam da competência exclusiva do Governo, deveriam carecer de autorização parlamentar, de modo que só a possa o poder executivo obter com carácter excepcional e invocando alteração das circunstâncias.
Por outro lado, quanto ao cumprimento das regras orçamentais, é necessário, para além da efectiva fiscalização sobre o poder executivo, tipificar e criminalizar as diversas infracções que possam ser cometidas, desde as ligeiras e negligentes até às graves e dolosas. Depois disso, como corolário, é indispensável que a justiça seja aplicada. Enquanto houver impunidade, não haverá maneira de pôr ordem duradoura nas finanças públicas, onde a parcimónia de uns só consegue alimentar involuntariamente o despesismo de outros.
Contudo, a criminalização das infracções orçamentais só tem efeitos “a posteriori”, o que significa que funciona como ameaça dissuasora. Mas no que respeita à actuação específica dos governos, só a fiscalização em tempo útil permitirá evitar desmandos graves e défices perigosos.
Pode-se agora objectar: mas como pode o Parlamento fiscalizar o Governo, se os deputados da maioria não dispõem de independência política e estão submetidos à disciplina de voto? A resposta consiste em banir da actividade partidária a obrigatoriedade da disciplina de voto, proibindo-a na própria Constituição, e assegurar métodos de democracia interna na escolha dos candidatos a deputados, obrigando a que estes sejam eleitos em vez de designados.

A independência dos deputados
Uma questão que tem sido tratada como marginal nos debates sobre a reforma do sistema político é a da independência dos deputados.
De um modo geral, serem os deputados politicamente independentes significa que não respondem perante ninguém, quanto às opções por si defendidas e aos votos expressos no Parlamento, a não ser perante os seus eleitores. Mas será de facto assim? Uma análise mais cuidada permite verificar que não. Além de responderem politicamente perante o eleitorado, todos os deputados respondem também perante o seu partido, que deles espera nada menos que cinco coisas: uma certa propensão ideológica, fidelidade aos dirigentes nacionais, acatamento das orientações dadas pelo partido, solidariedade institucional de tipo sectário e disciplina de voto. É a observância destes requisitos, esperada no futuro e, se possível, comprovada no passado, que determinará, mais do que a sua competência técnica ou política, a respectiva inclusão nas próximas listas eleitorais a submeter ao sufrágio.
É precisamente aí que reside o drama: os eleitos não são o resultado puro de um escrutínio. Antes de se submeterem a um processo de votação externo, que decidirá se passam efectivamente a ser membros do Parlamento, os futuros deputados são sujeitos a um processo interno de designação, nas fileiras do seu próprio partido, que determina se integrarão ou não as listas de candidatos. Como esta designação não depende de eleições internas, mas de uma escolha arbitrária confiada estatutariamente ao líder do partido ou ao seu directório nacional, a possibilidade futura de eleição fica de facto condicionada, ainda numa fase prévia, a uma espécie de declaração tácita de renúncia à sua própria independência política. É essa a actual natureza das coisas.
De facto, o deputado não é entre nós, assim como noutros sistemas políticos, considerado um mero representante de si próprio, eleito em função do mérito pessoal e da capacidade que lhe são reconhecidos, nem tão-pouco um simples representante do povo, por este eleito para dar voz aos seus anseios e aspirações (seja qual for a fracção do povo que se sinta nele representada); é mais exactamente um representante do seu partido, ética e estatutariamente submetido a uma direcção política – nem sempre por via directa, o que poderia ser mais chocante, mas através da chefia da sua bancada parlamentar – e compelido a uma actuação de facto que é supervisionada, nas suas componentes ideológica e de exercício do voto, pelos órgãos dirigentes do partido e respectivas ramificações. Na prática, o deputado torna-se independente de quem o elegeu e dependente de quem o pode voltar a designar como candidato.
Qual é o mal disto? Reside precisamente no pormenor não despiciendo de os dirigentes nacionais que o designaram serem em princípio os mesmos que, com grande probabilidade e em grande percentagem, se tornarão membros do Governo, no caso de o seu partido sair vencedor das eleições. Ora como é suposto o Parlamento exercer o controlo e fiscalização do Governo, de acordo com o princípio da separação dos poderes, mas a maioria parlamentar está refém das orientações políticas da direcção nacional do partido que vence as eleições e forma o próprio Governo, fica assim criada uma contradição insanável. Pior: invertem-se os termos e é o Governo que fiscaliza o Parlamento, já que o chefe do poder executivo controla de facto os votos da maioria dos deputados na assembleia legislativa e está em posição de exercer chantagem sobre a futura carreira política de muitos ou de cada um deles. Eis o cenário ideal para os abusos da acção governativa.
Se queremos um Parlamento que realmente controle e fiscalize o Governo, os deputados deverão ser politicamente independentes. Se preferirmos um Parlamento que sistematicamente dê cobertura aos erros e abusos do Governo, então podemos deixar as coisas como estão. Os deputados continuarão a votar alinhados com o seu chefe de bancada e este com o presidente do partido, e nomeadamente os da maioria parlamentar votarão alinhados com o Governo. Assim, este pode actuar como entender, de modo arbitrário e impune, desde que a lei lho permita; e onde a lei não permite, o Governo manda recado à maioria parlamentar (um recado que é uma ordem implícita, entenda‑se) para que mude a lei a seu contento. O principal contratempo que pode surgir é a alteração da lei exigir uma maioria qualificada e o Governo não dispor dela, sendo forçado a negociar com a oposição. Mas isso é a excepção e não a regra.

A inconstitucionalidade da disciplina de voto
O passo lógico seguinte conduz-nos à inconstitucionalidade da disciplina de voto. Esta, no entanto, requer uma pequena introdução teórica.
É inevitável começar por propor à doutrina jurídica uma distinção conveniente entre duas formas de inconstitucionalidade material das leis.
Chamemos inconstitucionalidade primária àquela que resulta de uma norma ou procedimento afrontar directamente um preceito constitucional, violando-o de forma óbvia através do próprio fim ou resultado pretendido. E considere-se que enferma de inconstitucionalidade secundária uma norma ou procedimento que, não contrariando pelo seu conteúdo expresso os imperativos constitucionais, produz no entanto, como resultado normal da sua aplicação, ainda que não pretendido, efeitos contrários ou diversos daqueles que a Constituição visa consagrar ou proteger.
Pode-se desde logo questionar se a disciplina de voto imposta pelos partidos políticos aos deputados parlamentares não constitui uma violação primária da natureza do voto, que a Constituição considera como um direito pessoal. Ser alguém coagido a votar contra a sua consciência, independentemente de qual o seu estatuto, quando é sua a titularidade do direito de voto, não é apenas imoral; pior do que isso, é uma aberração.
Sendo cada deputado membro dum órgão de soberania, como o é o Parlamento, segue-se que a imposição de uma disciplina de voto – que constitui para ele uma obrigação atribuída do exterior, e não uma mera recomendação, visto que a inobservância é sujeita a sanções – constitui afinal uma transferência sub-reptícia da soberania do Parlamento para os partidos políticos. Fica-se o Parlamento por uma soberania aparente, mas detêm os partidos a soberania real, visto que são eles que determinam de fora as decisões que hão-de ser tomadas lá dentro. Ora o Parlamento deve ser o órgão que efectivamente detém a soberania (isto é, a parte dela que lhe é constitucionalmente atribuída) e não apenas o local onde tal soberania é formalmente exercida, através de mandatários fiéis, por organizações políticas que lhe são exteriores.
Este é um exemplo de inconstitucionalidade secundária. Em nenhum local vem escrito que a soberania reside nos partidos políticos, que a exercem conjuntamente num local chamado Parlamento. A Constituição não é expressamente violada em nenhuma das suas partes, mas o resultado de tal prática é estranho ao que a lei fundamental dispõe.
Há outros resultados igualmente perversos.
Através da disciplina de voto, o chefe do Governo, sendo também o líder do partido maioritário ou da coligação vencedora, controla – directa ou indirectamente – o comportamento parlamentar dos deputados eleitos pelas listas do seu partido ou coligação, mantendo-os sob tutela. E assim, aqueles que constituem a maioria de um órgão que deveria controlar e fiscalizar o Governo, como preceitua o nosso ordenamento político, são afinal controlados e fiscalizados por ele.
O próprio presidente da Assembleia da República, considerado a segunda figura na hierarquia do Estado, ao ser membro do partido dominante no Governo, como geralmente acontece, fica subordinado à disciplina de voto que lhe é indirectamente imposta pelo líder do seu próprio partido, ou seja, o primeiro-ministro, que é apenas a terceira ou quarta figura da hierarquia do Estado, consoante os purismos protocolares que convenhamos adoptar.
Os próprios deputados, que constitucionalmente representam todo o país (e não, como vulgarmente se julga, o círculo por onde são eleitos) ficam reféns das orientações desses segmentos ideológicos do país que são os partidos políticos, que se arrogam estatutariamente o direito de transformá-los em moços-de-recados detentores de habilitações em excesso (valha a verdade, as intervenções parlamentares ditadas pela ortodoxia partidária e o esforço de levantar o braço ou premir um botão para exercer o voto não exigem desempenhos brilhantes). Mas a dignidade do Parlamento aos olhos do país ressente-se disso, assim como a própria imagem dos políticos. E não podemos censurar as opiniões perigosas que, por causa disso, consideram que a democracia é uma palhaçada.
Convém frisar que os partidos políticos são apenas associações que concorrem para a formação do poder político, mas que não são a fonte dele. Pelo menos, é o que diz a Constituição. Ora parece que andam espalhadas algumas confusões acerca da origem da soberania e sobre quem tem o direito de exercê-la.

A limitação do poder executivo

Sem deputados independentes não pode haver fiscalização eficaz do Governo, porque a maioria leal bloqueia qualquer tentativa. Pode haver críticas ao Governo, mas a minoria parlamentar que as faz não tem capacidade fiscalizadora, pois fiscalizar não é apenas criticar ou denunciar erros e abusos, é essencialmente impedir o atropelo deliberado de um programa governativo e a inobservância de um orçamento aprovado.
Sendo necessária a fiscalização parlamentar do Governo (ideia que, aliás, é parte integrante da teoria democrática), como conciliar a independência política dos deputados com a sua indispensável isenção relativamente a interesses locais?
Se a teoria constitucional e a própria Constituição estabelecem que a função do deputado não é a de defender os interesses particulares do círculo restrito de eleitores que nele votou, a perversão da representação parlamentar, uma vez esta livre do feudalismo partidário, só pode ser inteligentemente combatida pelos efeitos simbióticos de duas alterações legais: no sistema eleitoral, a adopção de um círculo nacional único; no regime de incompatibilidades, a proibição de os deputados acumularem ou alternarem arbitrariamente mandatos de natureza distinta. Nesta ordem de ideias, e como exemplo, um presidente de câmara eleito só poderia tomar posse após renunciar (e não apenas suspender) o seu mandato parlamentar. Seria uma coisa ou outra, nunca uma no activo e outra em "stand-by", já que um mandato nacional e um mandato local têm filosofias, obrigações, estratégias, interesses e éticas conflituantes.
Por outro lado, se "votamos num deputado para fazer cumprir um programa de determinado partido", como há quem afirme com uma parte de razão, é forçoso que ele tenha a autonomia necessária para se opor a qualquer incumprimento desse programa, ainda que proveniente da sua própria área política. Até porque a moeda corrente é vermos os partidos vencedores atraiçoarem rapidamente os seus programas eleitorais, defraudando impunemente os eleitores. Ora a competência fiscalizadora do Parlamento, que tem de conjugar independência e ética, implica que os deputados devam mais fidelidade ao eleitorado do que ao partido e que interiorizem que este se encontra vinculado perante aquele pelas promessas eleitorais que lhe fez e que o seu programa consubstanciou.
No sistema político norte-americano, por exemplo, é frequente que o Presidente tenha de se confrontar com resistências oriundas de congressistas do seu próprio partido, e daí não vem nenhum mal ao mundo. Não existem fidelidades automáticas, mas a democracia funciona melhor. Ela diminui a arbitrariedade das actuações do Executivo e obriga a melhorar a qualidade dos esforços de persuasão política, o que são consequências óptimas. O nível do pragmatismo também aumenta. Nas votações, as maiorias são menos previsíveis e a governação tem de se acomodar àquelas que são conseguidas, mas um poder controlado está longe de significar um poder inoperante. Contudo, na Europa continental, menos apreciadora de freios ao poder executivo, sempre se gostou de pensar que um Governo só é forte quando não tem de preocupar-se com embaraços parlamentares, isto é, que só é forte quando não enfrenta resistências nem controlo.
Os equívocos comuns estão fortemente enraizados nos hábitos políticos e na tradição perversa que espontaneamente se gerou e deliberadamente se protegeu. O que obriga a levar a análise ainda mais longe.
A função primordial de um Parlamento não é a de apoiar o Governo. Não é nisso que se manifesta a separação e a interdependência dos poderes, nem a sua principal competência própria enquanto órgão político.
O Governo não precisa do apoio do Parlamento para governar: tem uma vastíssima área de competência exclusiva, que lhe está constitucionalmente definida. O Governo só precisa do apoio do Parlamento para fazer aprovar propostas legislativas que estão fora dessa competência exclusiva, ou seja, para viabilizar medidas que ultrapassam a sua alçada, mas que condicionam a sua governação. E o Parlamento, como órgão político independente, não deve estar obrigado a aprová-las só porque o Governo as quer, como actualmente acontece com o expediente, indirectamente exercido, da disciplina de voto. Por outras palavras, o Governo só precisa de apoio parlamentar quando quer exceder a sua própria competência ou exercê-la no quadro de fundo de outros pressupostos legais. Se não conseguir maiorias favoráveis, fica condenado a exercer as suas competências dentro do puro respeito das leis que gostaria de ver alteradas. Chama-se a isto "poder limitado" e é uma das conquistas da democracia. A arregimentação dos parlamentares visa o resultado contrário: eliminar obstáculos ao poder e, por conseguinte, torná-lo menos limitado.
Quanto ao argumento de que a independência dos deputados tornaria o Parlamento ingovernável, é o mais fraco de todos. Porque é precisamente aí que bate o ponto: o Parlamento é um órgão supremo de soberania e, como tal, não tem que ser governado. Bem pelo contrário, é o Governo que necessita ser parlamentarizado. Porque é o Parlamento que tem um ascendente constitucional sobre o Governo, e não o inverso. E não faz sentido que uma certa subordinação orgânica exista, em certas matérias, a não ser para ser exercida. E já agora, e de preferência, para os fins para que foi criada.

Contra os círculos uninominais
O nosso país parece ser pródigo em diagnósticos inteligentes e remédios tolos, em análises lúcidas e soluções ingénuas.
Ainda não há muito tempo, veio de novo gente a terreiro defender a reforma do sistema político, verdadeira necessidade nacional, mas quem o fez não encontrou maior prioridade do que a criação de círculos eleitorais uninominais. O que, diga-se de passagem, não só não constitui uma prioridade, como promete os resultados mais aberrantes.
Quem nunca estudou ciência política fica generosamente desculpado por ignorar que, já há mais de duzentos anos, havia entre os primeiros constitucionalistas norte‑americanos (os autores dos Federalist Papers que forneceram a seiva intelectual da Constituição americana) quem fizesse notar e sublinhasse que, para dificultar a corrupção política, deveria haver uma prudente distância entre o eleitorado e os seus representantes, de modo que as relações e os vínculos pessoais interferissem o menos possível na actuação daqueles.
Por cá pretende-se seguir o caminho inverso. Defende-se uma relação cara a cara entre os eleitos e os seus votantes, pretende-se até que haja horários de contacto e atendimento pessoal. O deputado ficaria assim transformado numa espécie de mandatário, política ou moralmente obrigado a servir os interesses de quem o elegesse.
Quem pensa que tudo iria correr bem à velha maneira inglesa deve estar equivocado, porque nós não somos ingleses nem temos a mentalidade ou as tradições deles. Somos portugueses, com hábitos arreigados de nepotismos, clientelas, caciquismos, conluios, negociatas, favores e compadrios, demagogias e venalidades; acaso queremos transportar tudo isso para uma relação mais próxima entre eleitores e eleitos? Pelo contrário, uma tal relação deve ser o mais distanciada possível – no sentido, obviamente, de distanciada das pessoas e não dos seus problemas.
A regra para os círculos eleitorais deve ser a de eles corresponderam ao âmbito dos mandatos: para órgãos de freguesia, a própria freguesia; para órgãos municipais, o concelho; para órgãos regionais, a região; para órgãos nacionais, o país. É incongruente pugnar por um arranjo diferente. Que sentido faz que um deputado vá defender interesses locais para o Parlamento, a quem cabe zelar pelo interesse geral de todo o país? Não faltariam, como já se viu, deputados a chantagiar governos, a condicionar leis e orçamentos, a institucionalizar a troca de favores para satisfazer interesses municipais ou petições particulares de pessoas e empresas da sua zona eleitoral. É esse o caminho a seguir? Eis a questão nua e crua: a assembleia nacional deve representar toda a nação e zelar pelo interesse geral ou a sua função é servir de megafone para clientelas meramente locais? É isso que temos de decidir.
A solução correcta, ainda por poucos defendida, é a criação de um círculo nacional único para a eleição dos deputados à Assembleia da República. Isso contribuirá também para clarificar hierarquias dentro dos partidos. De caminho, evita-se um pouco do ridículo a que se tem assistido com a dança arbitrária dos lugares, as movimentações de nomes entre distritos, os folhetins da escolha dos cabeças-de-lista e outros episódios inenarráveis da política à portuguesa, que só não contribuem para desprestigiar ainda mais as nossas instituições porque o baixo nível a que estas chegaram já não o permite.

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